Neném e as Sheilas do Tchan

"Tá relampiando!, cadê Neném?

Tá vendendo Drops no sinal pra alguém.

Tá vendendo Drops no sinal ninguém".

(Relampiando, de Lenine e Paulinho Moska).

Era apenas um garoto. Um garoto que nunca amou nem os Beatles e nem os Roling Stones. E que tampouco cantou Help e nenhuma das músicas cabeças da época. Era um garoto de hoje, um dos filhos da "modernidade"e da privataria de FHC. Musicalmente era vidrado nas Sheilas do Tchan. Admirava também os tênis de marca, roupas e todo o consumismo que é impingido pela mídia. Mas tanto as Sheilas como o resto do consumismo, ele via co os olhos e lambia com a testa. Sim, porque era um excluído , um dos milhões de garotos miseráveis que perambulam pelas ruas das cidades. Um sem-lar, sem-emprego, sem-escola, sem-futuro e sem-esperança. Um marginal da sociedade, no sentido mais amplo do termo. Um "Pixote". Um garoto condenado à miséria e, o mais cruel, a uma existência breve. Um condenado à morte prematura. Um pobre garoto de rua, sem defesa e sem proteção. Quem o condenou a essa sub-vida? Foi Deus? Claro que não. A responsabilidade era da sociedade fria, cruel, elitista, materialista e fascista. Uma sociedade sem alma de cujo dicionário foram banidos sentimentos como fraternidade e solidariedade. Uma sociedade hipócrita e fascista cujos "notáveis"! acham que o problema dos garotos de rua devem ser resolvidos com cadeia e cassetete. São aqueles que posam de desenvolvimentistas e que fingem ser cristãos. São os adeptos de um "cristianismo" que não tem nada com o que Cristo ensinou.

Neném, este era o nome do garoto que teve a desventura de amargar uma existência breve e miserável. Não conheceu o pai, e chamado filho natural. A mãe, também uma excluída, ainda vegetou algum tempo exercendo a mais antiga profissão do mundo. Depois da sua morte, o garoto ficou vagando pela casa de parentes até fixar em definitivo residência nas ruas. Foi carregador de fretes, flanelinha, engraxate e vendedor de Drops nos sinais de trânsito. Passou fome, frio e toda espécie de privação. Mas o que mais lhe doeu foi a injustiça e a discriminação. O primeiro enfrentamento de Neném com o poder constituído, ou seja, com a lei, foi uma briga com um filho de rico. Trocaram tapas, mas s[ó Neném foi punido: foi preso e espancado pela polícia, torturado. Cometera o crime de enfrentar um bem-nascido. Como era de se esperar, sem alternativa dentro do sistema, ele enveredou pelo caminho sem volta do vício. A "cola" o ajudou a sonhar. Quando estava sob o efeito dela sonhava alto, inclusive com as Sheilas do Tchan. Nesses momentos pensava que era feliz. Era o começo do seu fim. Para conseguir compra a cola tinha que praticar pequenos furtos. Na verdade, Neném apenas imitava os graúdos, os verdadeiros ladrões. Enquanto ele afanava uma carteira, um banqueiro fazia um rombo num banco e, incontinenti, o governo tapava o rombo com o Proer; enqanto Neném "descolava" um relógio, um empresário de sucesso burlava o fisco; enquanto Neném tomava um radinho de pilha de alguém, os deputados surfavam em mordomias, eles e e os senadores, além dos marajás da maquina pública....

Posteriormente, já mais taludo e sofrido, Neném trocou a cola de sapateiro pela maconha. E, óbvio, devido a evoluir nos furtos, começou a ser rotulado de elemento perigoso, nocivo à coletividade e, logo-logo,foi apontado como inimigo público número um da sociedade. Ainda nao tinha dezoito anos, quando os chamados segmentos representativos da sociedade, após o cafezinho e o licor, depois dos arrotos de praxe e dos peidos, num jantar festivo, determinaram por consenso a necessidade de eliminar o "perigoso meliante". Não disseram isso com todas letras, deram a entender, inclusive alguns santinhos do pau ôco, gente das religiões. Determinação que não sofreu restrição nem por parte daqueles que certa feita elogiaram um tal "Estatuto da Criança e do Adolescente". Era, pois, uma sentença de morte anunciada. A polícia foi acionada bem como as "forças paralelas" (milícias).

Era preciso cortar o mal pela raiz. Era como se houvesse um cartaz, "Procura-se Neném vivo ou morto,de preferência morto". O mais ridículo, digo, trágico, é que muitos desses carrascos de elite eram infinitamente mais criminosos do que o garoto, porque eram responsáveis, via trambiquee mutretas oficiais, pelo aparecimento e multiplicação dos Nenens, dos garotos de rua, dos excluídos em geral.

Foragido, sabedor que seu destino havia sido traçado desde o nascimento, ele resolveu que não se entregaria, não apanharia de novo, não seria outra vez torturado, aliás, ele sabia que era melhor morrer lutando. Antes do desfecho dessa crônica de uma morte anunciada, Neném assistiu a uma passeata dos Sem-Terra. Aquela marcha pelos campos com aqueles homens calçando sandálias, mal-vestidos, empunhando seus instrumentos de trabalho, cantando e gritando slogans, impressionou o garoto. Simpatizou com aquela gente, vu neles irmãos seus, vítimas do sistema iníquo que gera a exclusão social. Se pudesse acompanharia aquele pessoal. Mais adiante a passeata parou e um dos participantes um cara magrelo de óculos, que vestia um paletó surrado, fez um discurso dizendo que toda terra improdutiva devia ser invadida elos camponeses e pelos sem-terra. Depois falou um padre, este foi ainda mais veemente afirmando que Deus nunca passara escritura de erra para latifundiário, a terra era de quem necessitava para o seu sustento e da sua família. Mas Neném não ouviu o resto, pois avisaram que a policia estava a caminho. Ele tinha que fugir. Mas fugir para onde? Ficou num barraco abandonado. Acossado, sem ter a quem pedir ajuda, recorreu a Deus e a Nossa Senhora, mas não tinha aprendido a rezar, então apenas pediu paz uma paz que ele sabia não existir para ele na terra.

Neném foi fuzilado com dezenas de tiros, cinco deles nas costas, mas as autoridades afirmaram, como sempre acontece, que a polícia teve que se defender porque o "elemento" havia reagido à voz de prisão. Após os primeiros disparos, ao tombar o garoto sentiu que chegara a sua hora, uma grande paz se apoderou dele e antes de expirar, nos estertores finais, pode ver à sua frente, rebolando, as duas Sheilas do Tchan. Aí morreu feliz.

A noticia do fim do "perigoso marginal" foi recebida com grande satisfação pelos notáveis da comunidade. Por iniciativa de um dos maiorais do pedaço era preciso prestar uma grande homenagem às forças da lei e da ordem (leia-se, era preciso se gratificar os executores da sentença de morte). Uma lista de adesão para angariar fundos começou a circular, inclusive com dinheiro para pagar aos executores. Outros pilares da sociedade souberam da "boa nova" após a missa ainda nos batentes da Igreja. Um deles, um conhecido santinho do pau Ôco, falso cristão, ainda com o gosto da hóstia na boca, mas com o coração frio e com a sua costumeira maldade, disparou: "Bem-feito, menos um bandido na nossa terra!". Esquecem esses hipócritas e fascistas, esses cristãos de araque, que para cada neném morto nascem mais dez, cem, mil, um milhão. Mais: ninguém pode ser feliz cercado de todo lado pela miséria. Cristianismo pressupõe opção pelos excluídos. E priu.

P,S. Esta maltraçada é de junho de 2000. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 22/04/2019
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