32 razões para não se fazer um bolo

Eu estava sentado em uma cadeira de plástico enquanto ouvia meu avô conversar lentamente com minha avó, parando de momentos em momentos, alguns nos quais eu achava que ele pararia de falar. Minha avó tinha mais paciência. Não tinha as mesmas preocupações que eu. Mas ele então, vagarosamente, entre crises de tosses e risadas, voltava a falar com sua voz rouca. Nunca admitiria para mim mesmo, mas os sons que aquele homem produzia eram horríveis e honestamente eu não sabia o que fazia naquela sala iluminada e cheia de sons incômodos. Evidentemente ali eu era invisível, apesar de minha avó ser a pessoa morta com quem meu avô conversava naquele momento.

Um belo raio de luz entrava pela janela enquanto ele relembrava um fato talvez trivial para quem não o tivesse vivido. Impressionante que lembrasse de algo naquele estágio de sua doença. Impressionante que conseguisse falar. Mas ele sempre fora um homem impressionante, e minha invisibilidade me deixava um pouco chateado, até mesmo irritado com aquele velho sujeito. Mas isto era injusto. Na verdade, tudo aquilo era injusto, um homem que havia trabalhado cinquenta anos de sua vida, dado seu suor para que sua família florescesse, não deveria terminar daquela forma. Os céus deveriam ter se aberto para recebê-lo havia muito tempo. E felizmente as lembranças felizes foram as que permaneceram, pois o caso que contava agora parecia ter um significado especial para aqueles dois que não eram mais um casal.

- Você se lembra... querida? Você se lembra de quando havíamos acabado de nos mudar para nosso primeiro apartamento e você ficou uma semana sem falar comigo por eu ter matado um rato em nossa cozinha?

Lentamente seu sorriso morria e seus olhos se tornavam um pouco mais opacos.

- Sim. A mesma cozinha onde tudo aconteceu... tudo tão vermelho. Aquilo... aquilo me fez lembrar do rato de tantos anos atrás.

Todas estas frases eram entrecortadas por tosses e longas pausas, mas neste ponto algo começou a apitar. Antes que eu pudesse me levantar uma enfermeira entrou com uma ampola na mão, inseriu no soro e logo o velho homem voltava a dormir. A mulher sem rosto, irmã das incontáveis e infelizes mulheres que entravam naquele quarto para sedar meu velho avô. Nem mesmo a cor de seus olhos eu podia discernir na indiferença dos olhares daqueles que sabiam que haviam cometido um erro.

Câncer de pulmão. Meu avô fumou por 35 anos mais 5 tentando parar. Quando ele começou fumar era algo da moda, como seu Iphone ou seu tênis da Nike. Na minha geração os males já eram deixados bem claros, apesar das coisas não terem mudado de maneira significativa.

- Acho que você deveria deixá-lo descansar - disse a enfermeira com sua voz da mesma cor de seus olhos.

Um pequeno sorriso de lado surgiu em minha boca enquanto eu me levantava. Aparentemente ela já havia feito um belo serviço quanto a isso e por mais que tentasse tudo o que conseguia era irritar-me com tamanha fingida preocupação. Parei por alguns segundos olhando aquele homem de poucos cabelos brancos, respirando com dificuldade e soube que nunca ficaria daquela maneira um dia. Se em algum momento da minha vida semelhante sentença de morte surgisse eu tinha certeza de que eu mesmo a faria valer. Convalescência. Poderia até soar como uma palavra bonita, mas a beleza parava por aí. Não encostei nem beijei sua testa, apenas encarei. Não se enganem, nada disso diz que eu não o amava. Eu apenas não conseguia fazer tais coisas. Como se o que ele possuísse fosse contagioso, ou nojento. Sim, eu me sentia mal com tais pensamentos, mas como abutres não havia nada que eu pudesse fazer para evitá-los.

Passei pela porta e a brancura daquele ambiente era como uma cortina de palco para a escuridão encerrada por trás de cada porta. As enfermeiras ao telefone apenas uma distração para as lamentações abafadas em cada quarto. Ocasionalmente um lamento alto demais poderia ser ouvido por aqueles que passavam muito tempo por lá, como eu, geralmente durante as madrugadas. Nestes momentos nada havia a ser feito e de minha parte, não havia empatia. O fim era o melhor meio para o sofrimento, e se alguém estava naquele maravilhoso palácio de marfim estava mergulhado em tal situação.

Quando o barulho da rua me saudou e seu ar quente balançou meus cabelos foi como se a realidade me desse um abraço de saudades. Eu abracei de volta. Era uma plena tarde de sábado e o fluxo de sons, luzes e objetos eram incessantes. As folhas das árvores amarelavam e caíam, como os cabelos de meu avó. As lembranças da vida real começavam a retornar vagarosamente, como se pedindo licença, fazendo com que meu medo do palácio desaparecesse. Mas sobrara apenas eu para assistir o espetáculo final. Algum estranho lado se recusava a ceder e persistia em manter a ordem ditada de que um moribundo deveria ter alguém para assisti-lo a morrer. Qual era a razão de tal coisa? Fugia à minha compreensão. Talvez fugisse da maior parte das pessoas. Morrer sozinho ou morrer com alguém era apenas morrer. Alguns segundos de intenso medo e dúvida, e não havia nada que uma pessoa a seu lado pudesse fazer. Logo a escuridão tomaria conta e toda a dor, todas as memórias e tudo aquilo que um dia importou deixariam de existir.

Sim, era difícil livrar-se de tais fúnebres pensamentos, mesmo depois de deixar o lugar que os havia causado. A voz. O acontecimento. A pessoa que não estava lá. O vazio da voz da enfermeira. O vazio que preenchia todo aquele lugar era contagioso, e era de tal maneira que me sentia no momento. Vazio.

Por sorte havia um bar próximo à primeira esquina. O melhor tipo, escuro e honesto. Completamente diferente de onde antes me encontrava.

O movimento estava fraco. Melhor desta maneira. Sentei ao balcão e pedi uma cerveja e um uísque duplo. O garçom, homem alto, forte e de cabelos grisalhos, nada falou, nada perguntou, não me olhou com olhos penosos ou curiosos. Apenas fez o que tinha que ser feito. Possuía seus próprios problemas e tinha a dignidade de não fingir que se importava com os dos outros. Reparei em um pequeno corte em seu pescoço, provavelmente ao se barbear. Reparei nas sujeiras em suas unhas, reparei nos calos em suas mãos. Sim. Isto era realidade. Nenhum palácio de marfim, por mais belo que fosse, poderia substituí-la. Pois o belo reside naquilo que é real, e no fim, o horrendo que tenta se disfarçar nada mais faz que se tornar mais horrendo.

O uísque desceu queimando e cerveja fez seu bom trabalho em esfriar. Meu celular vibrava e não precisava nem mesmo tirá-lo do bolso para saber quem era. Elaine, minha namorada. Se alguém se desse ao trabalho de olhar o registro de ligações veria que havia poucas variações nos números lá salvos. Resolvi não atender, algo estava errado em meus pensamentos e falar seria, naquele momento, um erro. Eu sabia sobre o que se tratava a ligação e não tinha a menor vontade de ouvir qualquer voz naquele momento. A estranha frieza que me atacava ao deixar o hospital sempre demorava a se esvair, e nestes momentos eu preferia ficar em silêncio, acompanhado apenas de copos sempre cheios.

Eu não trabalhava. Não no sentido clássico da palavra. Havia me formado em Economia e com o dinheiro da herança de meus pais eu fazia investimentos em pequenas e grandes empresas, dependendo de meu desempenho. Apenas pensar em explicar as nuances do que eu fazia para me manter vivo me cansava. Por fim pedia mais um uísque e me perguntava se algum tipo de memória era produzida na curta estrada de minha vida. Memórias para que um dia eu pudesse relembrar no momento de minha morte. Elaine sabia que eu não a amava. Ela sabia que eu era praticamente incapaz deste sentimento por outro ser humano. Tudo que eu precisava fazer fazia como um vento passageiro, sem deixar rastros significativos e o mais rápido possível. Mas imagino que nosso contrato era claro. Eu era jovem e rico, ela era uma mulher que valorizava principalmente a última parte e era apenas isso que mantinha-me em um relacionamento com ela. Realidade, honestidade. Poucas coisas eu realmente guardava sobre ela, apesar de nossos quatro anos juntos. Eu não a amava, apenas a utilizava da mesma maneira como ela me utilizava.

Pedi mais um uísque duplo e uma cerveja.

Com certeza ela não sabia sobre meus pais. Sobre como ele havia pegado sua .32, disparado contra a cabeça de minha mãe e depois sobre sua própria. Provavelmente eu chorava no berço, e provavelmente aquele mesmo velho homem no palácio havia me carregado no colo enquanto os corpos eram colocados nos sacos pretos e levados embora. Meu pai foi um ator de segunda categoria, e quando os trabalhos se tornaram escassos e minha mãe se ofereceu para ajudar nas despesas trabalhando como garçonete a gaveta se abriu e os disparos foram feitos. Não desaprovo tal atitude, honestamente. Quando se atinge um beco sem saída é preciso reconhecer. Talvez como eu, ele pensasse estar fazendo um favor a ambos, ou corrigindo um erro de anos atrás. Mas no fim falhou, pois lhe faltou a coragem de terminar tudo o que começou. O banco do bar dobrava sobre com o peso tal desleixo, correto? Mas nunca contava a real história para quem perguntasse, sempre era algo diferente, como: haviam morrido em um cruzeiro, sou órfão, ambos havia morrido quando eu era muito jovem. Nunca os dois tiros. Era incompreensível e paradoxal como um homem como eu, que prezava tanto por honestidade, sempre mentia sobre tal parte de minha vida.

Mais um duplo e uma cerveja. Finalmente a paciência para retornar a ligação surgia do fundo daqueles copos.

Não precisou de mais do que dois bipes para Elaine atender com um tom de voz completamente alegre e despreocupado.

- Olá, amor! - disse como se não possuísse uma preocupação no mundo.

- Olá - respondi no melhor tom possível, aparentemente não o suficiente.

- Algo errado?

- Não, apenas algumas ações que deveriam subir desceram.

- Oh...

Ninguém realmente se interessava por tais assuntos além daqueles diretamente envolvidos. Ela continuou:

- Mas espero que não tenha se esquecido do almoço amanhã com meus pais.

Sim. Eu havia esquecido. Na verdade não havia o menor traço de lembrança de tal compromisso além de algo sobre um bolo.

- Claro que não. Qual é mesmo o tipo de bolo que devo levar?

- A que você quiser. Mas meu pai não gosta de passas.

- Sim, senhora. Nada de passas.

Talvez. Talvez 32 passas.

- Até amanhã, meu amor - ela disse, sem o menor amor na voz.

- Até.

Elaine era uma mulher maravilhosa, esteticamente falando. Longos cabelos castanhos claros reluzentes e grandes olhos verdes que sempre me fitavam avidamente. Seu corpo era maravilhoso e nos prazeres do sexo nada deixava a desejar. Mas o que possuíamos era apenas um ato de prostituição legalizado. Se eu não fosse inteligente e perspicaz não possuiria o que possuo, propriedades e títulos no valor de milhões. E ainda assim não precisaria de tais qualidades para saber que ela me traía sem o menor pudor. Eu já havia presenciado duas vezes. Eu sabia exatamente a causa daquilo tudo. Não era o sexo. Eu sabia o que fazer, e fazia muito bem. Era apenas estes pensamentos que faziam de mim uma casca vazia. 32 cascas vazias. Era impossível não perceber que eu não ligava para nada. Milionário ou mendigo. Solteiro ou casado. Era como ser carregado pela maré. Uma maré que demandava visitas a palácios de marfins empanturrados de moribundos e bolos. Talvez uma torta de tangerina.

Quando saí do bar minha visão já não era a mesma e meus passos vacilavam um pouco, mas nada perceptível para os transeuntes sorrindo e gritando, de mãos dadas, planejando o futuro, planejando mudar o mundo. Fingindo de que tudo não passava de uma peça encenada por maus artistas que não recebiam pagamento algum pelo que faziam, pois não sabiam o papel que exerciam. Eu também caminhava sorrindo, talvez um belo sorriso, mas um sorriso de escárnio, pois eu era superior. Era como ver pelas paredes, a realidade estava lá, pronta para ser apreciada, apenas ignorada por ser crua demais para aqueles fracos de coração.

Quando cheguei em casa vomitei tudo o que havia bebido. Olhei-me no espelho e me lembrei como sempre as pessoas diziam sobre minha semelhança com meu pai. Cabelos negros como o céu sem lua e olhos azuis como as estrelas fugidas do mesmo céu. Minha barba estava mal feita, mas isto não importava. Havia 32 maneiras de fazê-la da maneira correta.

Alcancei o revólver no topo da prateleira e sentei-me na minha poltrona preferida, vendo o dia morrer lentamente eu um lindo lampejo alaranjado.

Eu não mais queria ver o branco das paredes ou ouvir a respiração pesada de meu avô.

Mas o que eu realmente não queria fazer era comprar um bolo.