Como Se Pelo Inferno Tivesse Grande Desprezo

O objetivo é, geralmente, poder ou riqueza. É um prazer exercer autoridade sobre outros homens, e é um prazer viver da produção do trabalho de outros homens. (RUSSEL, Bertrand - Por que os homens vão à Guerra)

Nesta manhã de outono, eu acordei desprezando meus demônios. Não sei dizer ao certo o porquê, talvez fosse as circunstâncias temporais deste exato momento. Era perceptível a presença de uma frente fria na visão de meu horizonte. Essas frentes frias são as típicas massas de ar que, ao longo do ano, percorrem o Círculo Polar Antártico em direção ao norte, sobrevoando milhares de pessoas até o local que me encontro: sentado na sacada de meu apartamento, observando a fria e cinzenta paisagem da metrópole de São Paulo, verticalizada quase por completo entre prédios comerciais, residenciais e shoppings que limitam minha visão ocular a uma curta distância – notavelmente uma cidade claustrofóbica para qualquer ser consciente –. É neste cenário que observo a neblina trazida pela frente fria, a mesma que causa enxaqueca em minhas têmporas devido a frieza e embaça as janelas de todos os objetos presentes na atmosfera neblinosa. Eu sabia que culpar o tempo pelas minhas condições de delírio cotidiano era leviano; pois, eu tinha completa noção do quão é um erro crasso comparar minha capacidade cognitiva apenas com fatores meramente climáticos. Porém eu precisava, ao menos, encontrar um único motivo para depositar toda minha angústia neste dia. Além disso, não podia me esquecer do fato de estar com uma dor de dente latejante. Aliás, essa dor sempre esteve presente em minha vida. Tanto que, em determinado momento, já me acostumara a sofrer e suportar as dores físicas proporcionadas em meu corpo. Esse fato, fez-me lembrar de mamãe levando minha pessoa criança pelos braços ao dentista, uma vez que todos os anos em algum momento lá estava eu: sentado na sala de espera do consultório no dentista, balanço as pequenas pernas infantis que não tocam o chão. Completamente em silêncio. Observando cada detalhe do perímetro da sala, já tendo plena consciência de que toda minha espera era para levar agulhadas anestésicas em minha boca. Esse foi um dos motivos que tirou qualquer medo de dor física que pudesse me acometer durante minha vida – ou talvez esse seja o fator determinante do meu delírio cotidiano posto aqui –, mas sem grandes delongas, voltemos ao desprezo.

No dia anterior, estava voltando para casa quando sinto meu celular vibra no bolso frontal da calça jeans. Era uma mensagem. Não de qualquer pessoa, e sim daquela ao qual um dia eu entreguei meus sentimentos. Particularmente, até Lúcifer ficaria surpreso com tal mensagem. Nela estava escrito uma curta frase, parecia até um pedido de um déspota em pleno seu auge de poder: “estará ocupado hoje, meu bem? Caso não, encontre-me na viela próxima à minha casa às três horas”. Sinceramente, eu não parei para refletir e aceitei o convite rapidamente. Igualzinho a um trabalhador de algum antigo engenho cafeeiro do oeste paulista que precisa cumprir as ordens do senhor ou de um plebeu que precisa cumprir as de seu feudo. Encontrei ela no ponto de encontro pontualmente e, durante horas, ficamos conversando. Em determinado momento, estávamos trocando carícias enquanto ela estava sentada no meu colo contando – de forma afetuosa – o quanto sentia algo sentimentalmente grande por mim:

– Pierre, apesar de não estarmos mais juntos, infelizmente eu ainda o amo muito... Entretanto, eu aceito o fato de não sermos mais um casal que se dedica por completo um ao outro, pois o amor é você apoiar a felicidade do outro em todas as circunstâncias e, reconhecer a liberdade de escolha que o outro ser possui – disse ela enquanto tragava um baseado recém bolado e me observava com um sorriso encantador.

Inegavelmente, a frase dela me colocava em uma situação que fazia eu questionar meus próprios sentimentos mundanos. Eu estava ali por mero acaso. Não foi algo combinado dias antes. Apenas uma oportunidade surpresa de conversa e que, provavelmente, terminaria em afetos e talvez até em sexo. No entanto, a minha tortura mental se intensificava em encontrar alguma resposta para os meus sentimentos. Nos últimos tempos, a minha vida se resumia a preenchimentos momentâneos: mulheres amarradas em minha cama, livros em minha cômoda e algumas drogas ilícitas na gaveta de cuecas. Sendo sincero, eu não conseguia encontrar razões para alguém sentir algo pela minha pessoa, até eu repugnava-me, e assim tem sido por um tempo. Decerto, eu que sou o déspota que não consegue sentir nada... Sempre em busca de uma forma de preencher um vazio que eu nem sei mesmo definir o que é. Não posso negar que sentia inveja de sentir algo, talvez ao ponto de encontrar um motivo para minha vida nem que fosse por triviais cinco anos. De que adianta ler tantos livros? Realizar fetiches obscuros? Fumar um baseado? Sendo que todo amanhã acordo para seguir a rotina racional imposta pelo sistema onde não há nenhum sentimento humano, estou preso em algo que não posso escapar, um homem ordinário. Exclusivamente um estrangeiro em sua própria vida. Por isso, cá estou eu, observando a organização racionalista da sociedade na embaçada neblina que cobre meu apartamento: carros ou ônibus próximo da simetria do quadrado movimentados por rodas, levando seres humanos em uma fila única que possui quilômetros quadrados cobrindo todos os espaços da avenida, perante um semáforo que possui as colorações verde, amarela e vermelha com seus valores simbólicos para os transeuntes pendulares; carros das mais diversas marcas, sendo possível julgarmos as possibilidades que dentro deles podemos ter empregados ou patrões conforme o maior valor monetário da marca automobilística; soma-se a isso, o fato dos patrões e empregados serem os contribuintes para a movimentação do capital contemporâneo de algum investidor asiático, estadunidense ou europeu da grande rede técnico-informacional humana que, provavelmente, brinda sua taça de vinho xerez caro, comemorando com grande alegria as altas das ações na bolsa de valores de sua empresa monopolística; não podendo se esquecer, que esse vinho sendo brindado foi trazido por algum empregado que, com grandes probabilidades, estava em alguma caixa simétrica próxima do quadrado com rodas. O fato mais curioso de tudo: todos fazem partem dessa mesma rede técnico-informacional. Não se salva um! Não precisa ser unicamente da espécie Homo Sapiens Sapiens para estar presente na rede, basta simplesmente ser um animal com vida. Infelizmente, eu sou também apenas mais um entre as milhares de vítimas e, por algum momento, eu chego à conclusão de que meus preenchimentos momentâneos é só a base de uma pirâmide de todo um sistema que não há sentimento algum, ou talvez esse seja um argumento para o fardo de meu vazio, ou não signifique coisa alguma... Não mais que um delírio cotidiano.

Sendo assim, a excêntrica forma que eu encontrei para não ser mais afligindo pelas consequências das dores causadas sistematicamente por questões humanas, é desprezar e estudar os demônios que me rodeiam. Todavia, é uma dor imensa, pois esses mesmos demônios te afligem de volta. Estou na eterna tortura proporcionada um dia à Farinata Uberti, sendo que certa vez ele olhou para o inferno com grande desprezo pelos demônios que o rodeavam sedentos para torturá-lo. Não é difícil de se imaginar como os demônios sentiam ódio por Farinata, fazendo questão de lhe infligir penas maiores do que a imposta por seus companheiros, na esperança de lhe arrancar um sinal de reconhecimento no mais breve tremor de sua parte, furiosos por sua insistência em se comportar como se eles não existissem. Estamos todos presos com os demônios que foram criados, alimentados e desenvolvidos por nós mesmos. Será que conseguirei eternamente desprezar eles e aguentar a tortura constante? Enfim, que atire a primeira pedra quem souber tal resposta. Contudo, eu prefiro a tortura dos demônios do que a dor de dente latejante desta manhã de outono.

Breno Aurélio
Enviado por Breno Aurélio em 24/06/2019
Código do texto: T6680172
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