TIO CHICO

Chamava-se Francisco. Como o santo, como o papa, como o rio. Não carregava alcunha alguma. Seus olhos cinzentos confundiam-se com o céu coberto daquela tarde. Se alguém prestasse atenção, notaria neles o tormento de uma tempestade em formação.

Francisco nunca sorria. Achava desperdício mostrar os dentes. Mesmo porque alguns deles já lhe faltavam pelo gastar do tempo e a pouca serventia dos conselhos do tio dentista. Um rosto forte, arado pelos anos que lhe comiam a carne e a boa vontade.

- Sentimos sua falta na missa de domingo.

Ele virou-se surpreso com a voz feminina que lhe subia pelas costas. Ana Maria, vestida de chita e boas cores, tinha as mãos na cintura como a tomar satisfações.

- Não sei qual a surpresa, menina. Sabe que não me dou com esses negócios de igreja.

A moça aproximou-se como quem se achega a uma onça brava, com vagar e cautela. Aquele homem era mesmo um burro dos mais teimosos, uma mula preta empacada.

- Mas e o batizado do menino?

Francisco sacudiu os ombros demonstrando sua franca indiferença. O batizado tinha acontecido por insistência de Doralice. A ele, tanto fazia, o pobre ser pagão ou cristão.

- Seu filho, homem!

Ele era alto e forte o bastante para impor certo temor se não lhe cabia bem qualquer respeito. A fisionomia tornou-se ainda mais carrancuda. Os olhos piscaram de forma nervosa. Sem pensar, Ana Maria deu dois passos para trás.

- Não falo sobre isso, peste. Desista de tentar me contagiar com essa sua baboseira sentimental.

O assunto sempre o incomodava. Não entendia a razão de tanto alvoroço em torno de fraldas sujas. Por ele, nem falaria mais sobre isso. Doralice parira o menino, que o embalasse. Francisco tinha outros planos para os próximos anos e nenhum deles incluía criar rebentos de uma prostituta.

Estava certo de que Doralice, moça nascida no seio de uma família tradicional, teria sido uma boa esposa. Talvez para algum fazendeiro abastado e cansado de colecionar ninfetas e achaques. Sim, com certeza, enfeitaria a cama de qualquer homem bem intencionado que soubesse apreciar sua beleza morena. No entanto, não foi este o destino que a vida lhe havia reservado.

Aos olhos do povo, Dora era apenas mais uma mulher perdida da noite. Francisco nunca soubera o trajeto percorrido pela mulher que, um dia, aparecera aos prantos, colara-se ao seu peito, jurando- lhe fidelidade.

Não haviam trocado mais do que cumprimentos breves, um abonar de cabeças e simpatia. Daí a começar um romance, era estrada por demais a se rodar. O passado desconhecido de Dora parecia a Francisco um caos sem revelações. Por mais que dali tivesse retirado terra e algumas explicações, nada vinha à luz da verdade. Ela continuaria a mentir como se houvesse nascido no bordel.

Francisco lembrava-se da Dora das festas de São João, com o seu vestido colorido rodado e as tranças enfeitadas com pequenas flores. As pernas morenas aparecendo quando girava e o riso fácil de menina que ainda se dizia anjo. Depois, só os rumores pela estrada e as carolas mais devotas a virarem o rosto para aquela que, já excomungada, pedia auxílio. Francisco sentiu pena. Não, não havia sido só pena. O desejo afrouxara sua guarda e ele cedia a cada vez que Dora molhava seu peito com lágrimas. Assim, fizeram o que ela chamou de amor e ele de alívio. A barriga não tardou a crescer e a cidade logo apontou possíveis responsáveis. Mas sendo Dora agora uma qualquer, os suspeitos e dúvidas reuniam-se como gado. Ela jurava que só com ele se deitara naquela lua e agora crescia nela o seu legado.

- Não faria mal algum, você visitar Dorinha e o menino. Está cada vez mais parecido com você, Chico.

Aquele olhar coberto de certezas e doçura. Ana Maria sorriu como a calar um segredo que lia nos olhos do primo. Francisco tomaria sua cintura e a beijaria se não fosse ela a prometida do seu melhor amigo. Prima, tudo bem, mas trair tal amizade seria além da sua confissão. Sentiu falta do descaso que às vezes se abrigava em seu coração. Amaria a prima, talvez amasse também Dorinha. Do seu jeito bruto, de quem sabe que na manhã seguinte o lixo não deve mais pertencer à casa.

As sardas de Ana Maria faziam com que ele se lembrasse dos olhos de Dora, do tremular de cores que havia em suas íris desenhadas com capricho. Não é que não se importasse com ela, até lhe queria bem, mas o menino não lhe interessava. Parecia resultado enganoso de contas que ele não fizera. Era parecido com ele? Pois, sim! Deitara com mais da metade da cidade e nenhuma das mulheres, sendo jovens ou quase senis, arredondaram o ventre. Agora, vinha essa moça de olhos pincelados com ferrugem e pernas de jambo dizer que lhe dera um filho. Francisco julgava-se seco, estéril como a terra sob seus pés.

- Mas se você prefere negar entrada à felicidade, que assim seja, Seu Chico.

Ele acendeu um cigarro com a intenção de afastar a prima com a fumaça que ela considerava nociva, pois encardia os seus pulmões. Ana Maria apenas afastou-se um pouco, mas continuou a fitá-lo com a sua insistente ternura.

- Suma daqui, garota!

A voz parecia tão áspera quanto a barba que começava a lhe sombrear o rosto. Francisco lixava as palavras para que chegassem mais límpidas aos ouvidos dos dissimulados. Aninha era uma deles. Sonsa, doce, cheia de boas intenções, mas perigosamente gentil e delicada com ele.

- Sabe que não tenho medo de você, não sabe?

Os olhos, aqueles olhos de encerrar tempestades. A cintura fina pedindo um abraço, os quadris desenhando convites noturnos. Francisco olhou a prima com firmeza como se assim pudesse apagar os pensamentos febris que lhe vinham.

- Pois devia ouvir o que dizem por aí de mim, menina.

Ela já ouvira. Todas as lendas contando sobre o primo arruaceiro, metido a justiceiro, sempre pronto para descartar uma amizade. No entanto, para ela, o moço rude era somente Chico, seu primo. Com o tempo, seria conhecido como o velho e bom Chico. Só ele não enxergava isso, essa bondade que esperavam dele.

O jeito que Ana Maria olhava para ele, tornava as coisas confusas. Por mais que Francisco tentasse manter-se distante de qualquer sentimento de apego, a confiança da prima moldava seu caráter em minutos. Espinhentas sensações lhe vinham pela garganta. Pensou em Doralice, no menino e no rio. Se fosse fluir como a natureza lhe convidava a fazer, Francisco faria de Dora uma mulher honesta e acolheria o pequeno como seu filho.

- E o menino, como se chama afinal?

Ana Maria sorriu, divertindo-se com a mudança súbita no semblante do homem bronco. De repente, tudo se encaminhava como Doralice havia previsto. Chico cederia, afinal.

- Francisco como você, é claro.

Se ele fosse capaz de sorrir, teria feito isso, mas não era. A ideia da possível paternidade parecia-lhe agora um pouco mais atraente. Talvez fosse mesmo um caminho sem volta, o único caminho, afinal. Assumiria o menino como seu filho e, assim, teria Doralice em sua cama. Mais do que isso, Ana Maria também seria sua, se a quisesse de verdade. O amigo não precisava saber disso, é claro. Estava seguro de que ela se desmancharia em segundos assim que ele desse o primeiro passo em sua direção. O jeito como ela o olhava dizia tudo.

A moça brincava com a barra do seu vestido de chita, mostrando um pouco mais das pernas fornidas, esculpidas em delícias. Dora ficaria satisfeita com o resultado da sua conversa com Francisco.

Ana Maria sabia que o menino Francisco não era filho do homem à sua frente. Não podia ser por razões quase óbvias, mas isso não importava. Doralice ficaria agradecida e talvez cedesse aos seus sorrisos de menina. Amava aquela mulher desde os quinze anos e perceber a paixão de Dorinha pelo seu primo havia sido difícil, quase impossível de suportar.

Tanta mulher para pegar e se esfregar, e o idiota tinha que escolher Doralice. Mesmo sendo a razão de seus anseios e paixões, Ana sabia que a moça era mesmo uma perdida, vadia, sem classe, carregando o filho de qualquer um nos braços como um troféu. Até quando Francisco resistiria aos seus apelos de fêmea? Por isso, Ana resolveu colaborar com Dorinha e convencer o velho Chico, o bom Chico, a formar uma família feliz.

Francisco terminou o cigarro e observou a prima com novos olhos. Não tinha mesmo muito a perder. Não precisava ficar no prejuízo ao assumir uma família, pelo menos não se casaria com Doralice de graça. A família da moça, mesmo afastada, ficaria feliz por saber que ela encontrara alguém para lhe dar um nome e um teto decente. Que fosse ele, então. Nada mudaria em sua vida, talvez só sua conta bancária. Se Aninha pensava que o enganava com seu sorriso e suas pernas, cometera um grave erro. Nem todos os Franciscos são santos, nem todos os Chicos são broncos.

- Diga à Doralice que quero falar com ela.

Ana Maria largou a barra da saia e quase pulou nos braços do primo. Conseguira, afinal. Tinha sido fácil, mais fácil do que imaginara.

O abraço dos primos aconteceu em quase solene silêncio. Francisco sentiu o coração da moça bater com força, aos pulos como o pinote de um garanhão. Por que tanta alegria? A menos que…

- Mas o menino vai ter que me chamar de tio.

O sorriso desmanchou-se no rosto de Ana Maria por alguns segundos. Logo entendeu o que o primo dizia com as palavras e o olhar duro. Não havia ali dúvidas ou ressalvas.

- Será como quiser, primo. - Disse ao estender a mão miúda para ele - Tio Chico?

Francisco cuspiu no chão o resto de dúvidas e nicotina, expelindo o gosto ruim dos dias passados. Deu as costas para a prima, ignorando sua mão estendida e exalando um desejo frustrado. Entre dentes, os poucos que lhe restavam, repetiu como um eco distante:

- Tio Chico.