Ninhada
Delinix Regia Raf. O Flamboyant empencado de tons de laranja, vermelho e amarelo brilhava ao sol de janeiro no calor infernal em um sítio no interior do Rio de Janeiro. Como eu gostava daquela árvore! Se havia uma árvore despretensiosa era aquela! Era tão linda, mas tão linda que não tinha qualquer conhecimento da própria beleza. Ela se contentava em ser o que era, abrigando de aranha à pássaro, de formigas a galinhas corajosas. Uma certa vez a árvore concordou até em servir de coçador de costas para uma vaca enxerida que arrebentou a cerca e entrou no jardim da frente, pisoteando as amarílis rubras que eu havia plantado no canteiro que circundava a árvore só para fazer companhia a ela. Ou inveja.
De frente a árvore estava a porta de frente da casa, feita de metal velho, enferrujado e coberta por uma tela fina para evitar que os pernilongos que mais pareciam halterofilistas voadores, entrassem nos aposentos e carregassem os moradores, que absortos no sono estariam indefesos de tal investida.
Ao lado da porta eu instalei uma rede. Era o meu lugar preferido do mundo todo. Um livro, uma rede e a Delinix Regia Raf. Momentos como este eram raros e salpicados entre os infindáveis afazeres de dona de casa, mãe de dois e madrasta de um, esposa de um sujeito para quem tudo deveria estar em mais perfeita ordem e para quem nada, absolutamente nada, era o suficiente.
Com o descortinar dos anos percebi que era um problema mais meu do que dele, mas fato é que naquele momento eu não conseguia me permitir ver o quanto a minha vida havia se tornado insuportável. E nesse estado de enfermidade febril nos tornamos uma massa disforme formada por dois indivíduos que alternavam os papeis de algoz e vítima, mas sempre infelizes e fechados em sua própria agonia.
Lia Gabriel Garcia Marquez. Ainda tenho o livro de capa verde água que emprestei para minha filha que o devolveu dizendo que a leitura era por demais indigesta. Foi quando escutei ao longe gemidos baixos, dolorosos, compridos como agulha que enfia na pele. Me soaram como pedidos de socorro, tão irresistíveis que disse adeus a Aureliano e seu rabo de porco e levantei meu corpo preguiçoso da rede com ares de heroína.
Abrindo o portão pesado da entrada do sítio me deparei com uma caixa suja de papelão, daquelas que se encontra nos supermercados. A caixa estava semifechada, mas como uma das abas havia sido arrancada consegui ver que em seu interior estava uma ninhada de cachorros sobre um pedaço de tecido enegrecido pelas fezes e urina. Com os braços envolvi aquela caixa fedorenta e levei para dentro, enquanto dizia aos pequenos que tudo iria ficar bem.} Era a coroação do meu ato máximo de heroísmo.
Mas eu era uma pessoa sobrecarregada. Você precisa ter em mente isso! Eu me desfazia em vários ‘eus’ ao mesmo tempo para atender as demandas de todos que me cercavam. Tempo era algo muito valioso e da pequena, quase ínfima, porção que me sobrava para fazer algo que agradasse a mim mesma, eu abri mão no momento em que carreguei para dentro aquela caixa com seis cachorros.
Em pouco tempo descobri que não eram cachorros, mas sim demônios. Eles sujavam tudo por onde passavam, roíam tudo o que podiam. À mulher perfeita, com a casa perfeita e os filhos perfeitos, a abnegação em pessoa, não era dado ter uma casa cheirando a urina de cachorro! Mas a mãe perfeita é também exemplo de caridade e humildade e não poderia mostrar a céu aberto o rancor pela tarefa extra que aqueles pestinhas representavam.
Foram então colocados na oficina do Coronel, que havia sido projetada para a atividade de bricolagem que ele sempre planejava exercer, mas no final sempre perdia para o tempo ocioso na frente da televisão. Não precisou muito tempo para que a oficina também virasse uma latrina tamanho família, que precisava ser lavada de tempos em tempos, atribuição esta que passou a ser minha duplamente. Primeiro porque a limpeza é encargo da mulher e segundo porque eu havia trazido os animais para dentro de casa.
Até hoje me pergunto o motivo pelo qual ter uma vagina me fazia mais capaz ou apta para lavar aquela oficina. Ou o restante da casa. Ou a roupa. Ah o que eu gostava mesmo é de passar a roçadeira no capim que crescia! Como uma desbravadora ia passando em pêndulo o fio de nylon preso na ponta da haste de metal pela braquiária, abrindo caminho orgulhosa enquanto sentia o peso da máquina nas tiras que a prendia às costas e o suor escorrendo entre os seios! Trocaria sem pestanejar a lavagem das varandas pela Gertrudes, a roçadeira vermelha com cheiro de gasolina e óleo.
Mas a lavagem da oficina precisava ser feita. O Coronel já havia reclamado do cheiro que empesteava o sítio todo e que visivelmente vinha da oficina, a latrina que eu havia reservado aos novos convidados.
Vesti minhas botas azuis e sorumbática acoplei à torneira externa a mangueira de metros incontáveis. Ela precisava ser comprida para dar a volta em toda aquela varanda desnecessária. Por que diabos alguém precisava de quatro faces de varanda? Para que a única adulta titular da vagina fosse obrigada a perder horas de seu dia para mantê-la limpa? Sítios tem pássaros! E pássaros adoram varandas! A varanda era a latrina dos pássaros assim como a oficina agora era latrina dos cachorros. Minha vida era circundada por privadas cuja limpeza dependia de mim.
O caldo grosso e fétido escorria pelo chão de cimento cinza. Nada daquilo parecia aborrecer os filhotes que pulavam, rosnavam, latiam. Ainda acho que eles interpretaram tudo aquilo como uma brincadeira, por mais que meu rosto estivesse carrancudo e esfregasse com ódio aquela sujeira toda. Ah, a beleza da subjetividade!
Eles não tinham nome e eu acaba os chamando pela cor da pelagem. Sempre me disseram que se você coloca nome nas coisas elas passam a ter existência própria e você se afeiçoa. Talvez seja por isso que eu gostava tanto da roçadeira vermelha de nome Gertrudes! Hoje todos os meus instrumentos musicais possuem nome, o que não é muito bem entendido pelas pessoas que convivem comigo. Eles tomam como pilhéria, porque caso contrário começariam a considerar a necessidade de uma providência mais incisiva, como medicação ou internação preventiva.
Insistentemente o ‘cor de chocolate’ tentava pegar a vassoura. Ele não percebia que aquele objeto, naquele preciso momento era o alvo de todo o ódio reprimido por aquela vida insustentável que eu mesma estava me impondo nos últimos cinco anos. Acho que pensou que era um jogo! Como animal mais sábio do que eu, ele não precisava esconder o instante em pensamentos ‘indos e vindos’ em uma agitação mental barulhenta. Ele conseguia dedicar sua atenção inteiramente ao momento, enxergando a alegria daquele movimento de vai e vem da vassoura.
E a ira surgiu, mesmo que não aceita. O que eu poderia fazer? Eu fui ensinada a não aceitar. E com a não aceitação o sentimento tornou-se ainda maior. De tão grande ele se apossou da maior parte de mim, jogando para um canto a parte pensante.
Meus pés chutaram com força. O ‘cor de chocolate’ ganindo correu para debaixo de uma prateleira de metal onde estavam enfileirados chuveiros com a resistência queimada e que seriam um dia reparados. Arfando, ele me lançava um olhar questionador e eu percebi que a força tinha sido demais.
Eu o convidei a entrar. Eu o convidei a entrar e depois, arrependida por todo o trabalho extra que o ato de heroísmo me trouxe, tive que matar. Porque matar era menos desumano que voltar atrás no pacto firmado entre herói e o resgatado. Era mais aceitável que simplesmente coloca-lo pra fora dentro da mesma caixa de papelão onde o havia encontrado.
Me arrependi no mesmo momento. Foi como se com aquela descarga de força houvesse saído de mim o impuro, o negado, o que não tinha direito de existir. O peguei no colo e posso jurar que ele me olhou como se compreendesse tudo o que havia acontecido. Sim, porque eles entendem. Eles aceitam aquilo que é e o que não é. Eles não enfeitam com palavras o impulso bruto para tentar esconder seu real sentido ou mesmo sua necessidade na tentativa ridícula de tornar mais palatável o indigesto.
Ele morreu ali mesmo, em meu colo que era só arrependimento, acolhido pela mesma pessoa que o matou. Enquanto escrevo eu choro. Penso que é necessária uma faxina de vez em sempre para jogar fora esses vômitos engavetados. Com o tempo eles se perdem dentro de toda a coleção do ‘não digerido’, mas como não foram dissolvidos de alguma forma se acumulam em um canto qualquer e acabam por enfeiar todo o resto.
O Coronel me perguntou o que havia acontecido quando me viu cavar uma pequena cova ao lado do canteiro de amarílis e deitar o corpinho já duro do animal envolto em um pedaço de lençol branco. E eu menti. Não! Eu omiti detalhes, porque o principal é que o filhote estava morto e essa era a realidade palpável e definitiva.
Todos os filhotes foram doados quando chegou a hora. Não me interessa o que foi feito deles. Não representaram nada relevante para mim além de um gesto fugaz de pseudo heroísmo, que depois se desfez em um pungente sentimento de arrependimento utilitário.
Mas o pequeno ‘cor de chocolate’ ainda povoa a minha memória. Seus ossinhos jazem em algum lugar entre o Rio e a Região dos Lagos, mas posso sentir à distância a sua vibração. Entre nós se formou um laço indissolúvel. O laço do não dito. Reverencio hoje aquele que um dia me ensinou que existe um nó que une definitivamente o indizível e o que se soterra.
Não sei se ele foi para o céu. Não sei nem mesmo se o céu existe. As vezes me ocorre uma fantasia. E se o que existir do lado de lá for um céu de cachorros? Depois de minha morte terrena, eu seria deixada na porta do céu dentro de uma caixa de papelão, para ser acolhida e depois rejeitada. Morreria com uma mordida do ‘cor de chocolate’ para então renascer na Terra.
E finalmente o nó seria desfeito.