De onde a vida brota

“Uma coisa bela é uma alegria para sempre”

John Keats

O sol brilhando nas plantas da cerca da vizinhança alegrava enormemente o rosto de Isabel. Apesar da idade, apesar do reumatismo ela andava feliz. Felicidade é uma coisinha difícil de esconder, pensou Isabel, já a dor se esconde atrás de um rosto sisudo, de uma casa fechada ou de um silêncio profundo. Olhava para o céu de julho e pressentia que a dor, quando não se revela, permanece ao redor da gente como uma nuvem carregada pronta para desaguar.

O inverno iniciava e a solidão dessa época dói no corpo assim como o frio. Por esse tempo, Isabel não andava sozinha, nem em pensamentos. Havia contratado uma garota para ir à quitanda e à farmácia com ela. A menina era de confiança, estudava o Ensino Médio. Como toda moça saudável de corpo e mente, tinha as faces coradas e o olhar ligeiro.

Duas vezes por semana os olhos ligeiros e os olhos felizes procuravam o peito nu e suado do jardineiro da vizinha. O rapaz, já esperando por isso, trabalhava de camisa aberta regando, capinando e estercando as roseiras do quintal.

Um oi, um olá era o que ele respondia ao cumprimento das duas. Retirava o chapéu de palha suado e roto e punha sobre o peito num gesto de deferência para com as mulheres. Mal elas se distanciavam, o jardineiro abotoava a camisa e limpava o suor da testa. Acompanhava calmamente o passo ondulante da moça e o andar miúdo da senhora. Rápido, lançava um olhar desconfiado para a janela da casa e retornava ao trabalho.

Na manhã de sábado Isabel e a menina voltavam do centro da cidade. Além das sacolas de compras traziam ramalhetes artificiais. Como de costume, caminhavam devagar. Sentiam um cheiro agridoce de plantas e esterco bovino. Então, relancearam o olhar por sobre a cerca da vizinha. Procuraram e não viram o rapaz. Ficaram na ponta dos pés e nada de enxergá-lo. Disfarçaram a decepção falando do tempo e de suas próprias sacolas, naquele momento, pesadas.

Quando ficou sozinha em casa Isabel tratou de ligar para a vizinha. Em algum momento da insossa conversa ficou sabendo que ela havia demitido o rapaz por uma questão de economia. O dinheiro mal dava para os remédios e o mercado, havia dito a outra. Disse também que tinha ficado com pena do moço que era quem sustentava uma família. Assim que desligou, Isabel pensou que quem sustenta uma família sustenta um mundo inteiro nos ombros. Uma família é como um jardim.

Na semana seguinte Isabel e a menina vinham com seus corpos quentes contra o vento frio do inverno. Não traziam sacolas pois tiveram que fazer um longo desvio até depois do aterro, nas baixadas do riacho. Elas se dirigiam a uma casa de madeira à sombra de um pé de manga. No portão de balaústre bateram palmas suadas e esperaram. O sol da manhã e a caminhada fizeram-nas arquejar e suar. Depois de um momento, surgiu uma idosa, bem velhinha. A seguir, duas cabeças de crianças apareceram na janela. Por último, saindo das sombras da casa veio vindo o jardineiro. É ele, é ele, pensaram as mulheres. Mas, não parecia. Estava cabisbaixo, triste e vestido.

Aproximou-se delas timidamente e cumprimentou dizendo bom dia. Elas responderam e olhavam para o rosto bronzeado e a blusa comprida tentando adivinhar como estava aquele largo e esculpido peito. A menina ainda sorriu, de cantinho. Isabel, mais comedida, teve dificuldades em explicar o motivo de sua visita. Por fim, gaguejando e gesticulando explicou ao homem. Ele sorriu e olhou para trás. A velha e as duas crianças sorriram também.

No segundo dia da semana seguinte a área em frente à casa de Isabel estava toda capinada. De um lado havia canteiros afofados para o plantio. Do outro lado, saquinhos de girassóis demarcando o cultivo. Também tinha telas, madeira e pregos para a construção de uma estufa. No meio de tudo, o jardineiro como o regente de uma orquestra dinâmica.

O sol estava a pino e Isabel a meio caminho de casa quando o jardineiro parou para o almoço. Retirou de uma sacola de pano uma magra marmita de alumínio, sentou-se sobre uma pilha de madeira no meio do quintal. Estava cansado e feliz. Isabel também caminhava com uma alegria dentro de si. Vinha ouvindo o trânsito da rodovia e o canto dos pássaros no arvoredo do caminho.

As ipomeias, as heras e o amor-agarradinho dos muros e cercas da vizinhança fizeram Isabel pensar que há muitos anos contemplava os jardins alheios e não sabia se teria coragem de contemplar o próprio jardim. Bom, pensou ela, admirar uma coisa bela não é questão de coragem, é uma questão de vontade. E isso ela possuía aos montes.

Enquanto pensava alegremente passou um ônibus escolar com a costumeira algazarra dos alunos. Isabel ficou olhando, um momento, até que viu a menina na janela. Ela levantou a mão, acenando, mas a menina não retribuiu o aceno. Olhava fixamente para os muros floridos e continuou olhando até o ônibus desaparecer numa ruazinha esburacada. O olhar da menina pairava sobre os muros, sobre tudo. Isabel acompanhou o olhar da menina. Depois ficou pasma com as folhagens volumosa das tumbérgias na varanda de uma casa de esquina.

Aspirando profundamente o ar e a vida da manhã Isabel chegou a casa. Trocando a sacola de uma mão para a outra, abriu o portão. Com o barulho o rapaz levantou a cabeça cumprimentando. Nesse momento, apesar do vento de inverno que soprava, ela sentiu um grande, um imenso calor. Gotas de suor desciam de sua testa e da testa do jardineiro gotas de suor também desciam. O peito do jardineiro estava desnudado, a camisa amarrada à cintura. Ela viu quando os pelos do braço dele, salpicados de poeira, reagia ao vento frio eriçando. Isabel, com a voz embargada, não respondeu ao cumprimento. Entrou rapidamente. Estava com os olhos grandes e molhados e com uma inusitada vontade de sorrir.

make
Enviado por make em 07/07/2019
Reeditado em 07/07/2019
Código do texto: T6690314
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