Eu me atrasei.

Eu me atrasei.

Foi tempo demais olhando pela janela, formulando pensamentos que não pareciam levar a fim algum. Pensando se devia sair de casa aquela noite. Tempo demais em uma festa que alguém que eu não gosto me convidou, e eu fui porque achei que dessa vez seria diferente. Não foi. Tempo demais esperando a carona que parecia não chegar nunca, naquela madrugada de frio inverno sulista, em que qualquer um tremeria a noite toda com o vento frio.

Vento frio. Que bate na nuca, trazendo uma sensação ruim.

Presságio de más notícias. Queria eu ter percebido isso naquela noite maldita, em que pedi para o motorista parar no posto de gasolina mais perto para comprar cigarros. Lentamente fumei o primeiro, enquanto observava as pessoas que comigo voltavam de mais uma noite desperdiçada, repleta de tentativas fúteis de manter uma vida social ativa. Todos bêbados, com exceção do motorista. Pelo menos é o que eu escolhi acreditar aquela noite. Eu disse que voltaria cedo pra casa. O que nos faz incapaz de obedecer até nós mesmos? O que estamos tentando provar quando desafiamos nossas próprias regras?

Enfim, fui incapaz de manter uma promessa de chegar cedo. Queria ser capaz de colocar a culpa nos bêbados que ali estavam comigo. Dizer que eu ter me atrasado era devido alguma inconveniência que me fizeram passar. Infelizmente, eu mesmo seria incapaz de acreditar nisso. Ingênuo, quis dar àquela noite mais uma chance de se redimir, sem pensar se iria me atrasar ou não.

Sem pensar. É irônico. Algumas pessoas pensam demais, outras de menos. Eu consigo ser os dois tipos, e mesmo assim sempre errar de alguma maneira. O que aconteceu naquela noite, no bar que ficava ao lado do posto? Já não lembro mais. Nada importante, imagino. Lembro da culpa de estar atrasado lentamente me consumir, até eu decidir dar um fim às conversas superficiais, e fazer o motorista levar-me de volta a minha casa. Infelizmente, eu tinha chegado tarde.

Eu me atrasei.

Se eu tivesse chegado mais cedo, teria passado a madrugada acordado contigo, resistindo o sono e aderindo a tua insônia. Poderíamos ter assistido teus filmes favoritos, enquanto eu desastrosamente cozinhava algo para você comer, já que se dependesse de você mesma, passaria fome. Mais cedo do que isso, nós teríamos saído pra ir na tua pizzaria favorita, e quem sabe até comprado um daqueles vinhos caros pra beber depois, já que ele sempre te fez sentir bem. Mas ainda mais cedo do que isso, nós passaríamos o dia juntos, passeando pela cidade pacata em que vivemos, e eu faria de tudo pra alegrar teu dia. Infelizmente, eu me atrasei.

Cheguei tarde demais pra te impedir de fazer o nó. Tarde demais pra de impedir de escrever aquela ultima carta. Tarde demais pra te abraçar e dizer que te amo. Mas na hora certa para te ver pendurada no teto, com os olhos vazios. Um vazio que olhava de volta para mim, admirando o horror que rapidamente tomou conta de mim. Um vazio que me amaldiçoou enquanto as lágrimas desciam, e eu tirava você dali. Um vazio que preencheu meu coração quando eu liguei para ambulância pedindo ajuda. Um vazio que me sufocou quando te vi ser enterrada, bem na frente dos meus olhos. Olhos aqueles que foram encarados profundamente pelos seus, sem vida nenhuma.

Os dias que se seguiram foram estranhos. Eu deixei de comer, tomar banho, sair do quarto. Fazia o mínimo de esforço para ficar vivo, porém continuava respirando por algum motivo. Talvez quisesse que a dor e a culpa me consumissem. Queria permanecer triste, poder gritar até perder o ar dos pulmões, e chegar perto de fazer o mesmo que você. Mas eu sabia que continuar vivo seria minha punição. Pois o verdadeiro problema é que eu me atrasei. Mas não me refiro aquela noite que o inferno testemunhei. Quero dizer que percebi tarde demais o que estava acontecendo.

Tarde demais.

Eu me atrasei pra perceber que tu não estava bem. Perceber que pensamentos macabros te intoxicavam por dentro. Perceber que tu precisava de mim ali. Eu me atrasei pra te ajudar. Pra oferecer todo apoio que precisou. Pra mostrar que me importava. Eu me atrasei pra dizer que te amava, e que o mundo sem ti não faria sentido. Quem sabe se eu tivesse agido mais cedo, as coisas teriam sido diferentes. Quem sabe.

Mas agora era tarde demais.

Bernardo Kleber
Enviado por Bernardo Kleber em 13/07/2019
Código do texto: T6695041
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