O COFRE DE CRISTAL

Quando o telefone tocara,Samuel pressentiu do que se tratava.

E foi com o coração a saltar que ele conduziu os vinte kilometros até à Casa de Saúde.

- Deus é que sabe! – admitiu para consigo próprio.

A chuva começou a cair, persistente, mais forte, quase torrencial.

- Foi melhor assim…

Mas as lágrimas assomaram e uma angústia intensa apertou-lhe o peito.

Uma das freiras que geria a instituição estava à sua espera no amplo alpendre do edifício branco imaculado.

- Boa tarde, Irmã.Onde está ela?

- Boa noite, senhor.Acompanhe-me.Eu levo-o até lá.

A noite descia e as sombras avolumavam-se no horizonte.Percorreu um longo corredor, desceu as escadas até à cripta, atrás da religiosa.

Aproximou-se do esquife toldado de dor e emoção.

Joana jazia serena, inanimada e só.E ele teve que segurar um soluço.

- Já chamaram as autoridades?

- Está tudo tratado, Sr Núria.Prefere escolher a funerária ou deixa isso connosco?

- Obrigado.Já telefonei para a vila.O pessoal da Agência deve estar a chegar a qualquer momento.

- Vou deixá-lo a sós.

E saiu.Samuel olhou à volta.As velas, as flores, as imagens de santos, a cruz…a mulher morta.Aquela que fora seu conjuge durante quarenta anos…ausente há muito tempo numa doença cruel perdida em qualquer lugar recôndito da mente.A belíssima rapariga de outrora por quem, um dia, se apaixonara loucamente.

O telemóvel retiniu.Era Jaime.

- Onde é que te meteste?

-A minha mulher faleceu há uma hora.

- Meu Deus!!...Onde é que estás?

- Na Casa de Saúde.

- Aguenta.Vou já para aí.Tudo mas tudo o que precisares, conta comigo.Estou a pegar nas chaves do carro e a ir.Não saias daí.Espera por mim.

Jaime chegou alvoraçado mas contido exactamente vinte minutos depois.Aproximou-se devagar, a medo e apertou-lhe a mão, transmitindo-lhe a sua solidariedade, cumplicidade e amor.

- Disseste-me que ela exprimiu o desejo de ser cremada.Queres que eu trate disso?

- Não , obrigado.A Agência encarrega-se.

- Claro.

Os cangalheiros chegaram.O corpo foi removido para uma outra sala junto à capela.A família e os conhecidos estavam longe, em Lisboa , a mais de trezentos kilómetros.Ninguém compareceu ao velório à excepção deles os dois.

Tarde na noite retiraram-se para regressarem no dia seguinte muito cedo para o funeral.

- Hoje - só hoje - deixa-me fazer-te companhia e ficar em tua casa – pediu Jaime.

Jaime preparou uma refeição frugal, sugeriu que Samuel tomasse uma bebida forte e abriu-lhe a cama.Samuel deixou-o conduzir ao quarto e sucumbiu rapidamente a um sono agitado durante toda a noite.O amigo permaneceu na sala e deixou-se também adormecer no grande sofá, envolto numa manta.

Para ambos, foi como se Joana em espírito atravessasse a casa e talvez acenado a agradecer a Jaime o precioso apoio prestado ao marido e vindo apertar nos seus braços frios e invisíveis o corpo de Samuel torturado com pesadelos.

A manhã raiou e o filme desenrolou-se como previsto.Quando voltaram do cemitério, Jaime deixou Samuel em casa, sabendo que ele deveria querer muito ficar só.

- Se precisares de alguma coisa.A qualquer hora… - esboçou um sorriso triste e arrancou.

Fez os cinco minutos que o separavam da sua pequena quinta onde o cão Piloto ladrou em protesto pela sua ausência e Fellini, o gato se escondeu, amuado durante uma hora.

Depois o telefone não o deixou mais digerir os acontecimentos da véspera.A filha nervosa, a chorar com o assédio que a directora da organização lhe fazia.O filho a participar que ia dar uma sova à mulher e partir a cara ao massagista que a andava indecentementemente a desfrutar.A nora a participar que ia separar-se do filho mas que esperava que isso não afectasse as relações sogro/nora que ela tanto prezava.O genro em pânico queixando-se que nunca vira a mulher tão descontrolada.O neto e a neta num pranto a pedirem que ele fosse até ao Porto acalmar os pais que iam divorciar-se…

Exortou calma a toda a gente.Tentou serenar as crianças.Explicou que infelizmente não podia largar tudo naquele momento e partir.Respirou fundo.Relativizou.Acendeu um cigarro, andou de um lado para o outro, sem saber muito bem o que fazer.

Sentiu a solidão como uma bofetada violenta e dura.Tanta gente e ninguém! Nem mesmo Samuel acedia a partilhar a sua dor com ele que fora mais do que companheiro e amigo durante os últimos meses.Talvez tudo isso fosse um prenúncio, fizesse parte de um plano.E ele tão somente um pobre patriarca de pés de barro.Um ponto na multidão dos homens, dos fantoches, fracos e demasiado pretensiosos…

Bateram à porta.Jaime foi lá.Era Samuel.

- Sabes…eu…agradeço e…

-E? Entra!

O outro entrou e ele fechou a porta.

- Quero virar a página contigo.Se tu quiseres.

- Quero.

Abraçaram-se com extremo cuidado como se fossem duas peças de porcelana.

Estavam ambos sentados à mesa a jantar de t-shirt e boxers quando um carro entrou no pátio e travou.

- Quem será?

Jaime foi espreitar.

- A minha filha e o meu genro!

Segundos depois …

- Olá Pai!Ai, desculpa…não sabia que estavas acompanhado.Eu e o Manel pensámos em fazer–te uma surpresa!

- Eu vou vestir-me .Desculpem a figura.Fomos cavar toda a tarde para a horta- lembrou-se de dizer Samuel, fazendo menção de levantar-se.

- Não Samuel.Não me faças rir.Peço-te que fiques.E vocês, sentem-se e jantem connosco.Mas antes, sirvam-se de uma bebida.Vão precisar.Quero dizer-vos uma coisa.Espero que não se escandalizem.Sobre mim e o Samuel.

O cão ladrou lá fora como que a incentivá-lo a falar e Fellini o gato entrou na sala com o seu ar altivo como quem dizia “Não posso perder isto por nada!”

* última parte da sequela já publicada no RECANTO DAS LETRAS com os títulos "O segredo mais bem guardado" e "Guardado a sete chaves".

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 15/07/2019
Código do texto: T6696085
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