Pernas e Regras

O ônibus que circulava a universidade acabara de sair do ponto. Eu entrei nele poucos instantes antes, por sorte. Mas nem todo dia é assim. De vez em quando, para não dizer frequentemente, eu chego atrasado para pegá-lo no horário das 16:00. A decepção diária nem me incomoda tanto, são só dez minutos para o próximo chegar.

Apesar disso, uma vez em particular sempre me tira do sério quando vasculho as memórias em minha mente. Eram exatas quatro da tarde, o ônibus estava a uns 20 metros a frente do ponto parado por causa do semáforo. Eu corri a tempo de chegar nele, batendo na porta pedi, ainda ofegante, para o motorista – cujo bigode engraçado me distraiu por um momento – me deixar entrar, disse que estava atrasado e fiz cara de coitado (afinal, quem não chora não mama).

O motorista, ainda que de forma contida, reclamou. Disse que é proibido a entrada fora dos pontos, mesmo que aquela lata-velha estivesse parada. Aliás, ele usou outras palavras. “É vedado o acesso fora das áreas designadas”.

Tive que esperar o próximo. Cheguei todo suado na sala, e a professora odeia quem chega atrasado. Agora, quando ela chega fora de hora, ninguém tem coragem de reclamar. Para ser justo, ela nunca falou em voz alta que detesta alunos que chegam atrasados, mas a gente da turma sabe sem que uma palavra só seja dita.

Não me entenda mal, não é por ter chegado atrasado que eu tenho más recordações desse episódio. Como eu já disse, isso é até rotineiro para mim. Eu sei que o motorista não pode fazer exceções à regra, que se ele fizer uma exceção todos vão querer, que vai virar bagunça e blábláblá.

O problema não é que ele fez, é o que ele deixou de fazer depois.

Alguns semanas depois deste evento – do qual os meus “amigos” carinhosamente decidiram me apelidar com nomes relativos ao meu mau cheiro ao chegar na classe – a mesma situação do semáforo se repetiu, porém com uma diferença crucial. Dessa vez eu estava dentro do ônibus, parte da frente, bem perto do motorista. E quem estava fora era uma estudante bonitinha, loira do cabelo curto. Ao ouvir ela bater na porta do ônibus, não esperei nada senão aquelas mesmas palavras dirigidas a ela. Talvez a satisfação de ver outro alguém numa situação análoga a minha aliviasse meus resmungados mentais rotineiros.

“Como é bom ver que não só sou eu que me ferro nesse mundo”, pensei.

Ledo engano. O velhote bigodudo sequer mostrou sinal de reflexão. Foi direto no botão. Se eu pudesse, queimá-lo-ia vivo naquele preciso momento com uma visão de raio laser. Motorista safado.

Por quê? Por que ela e não eu? Maldito rostinho angelical, só pode ser isso.

Engano meu de novo.

Foi só após muito que eu entendi de verdade o que aconteceu naquele fatídico dia. Ao que parece ela não tem uma das pernas, a calça cobre a prótese direita. O motorista é cunhado dela ou algo do tipo. Abriu a porta porque sabia de sua deficiência, de sua dificuldade de se deslocar e temia que ela se esforçasse demais apesar do recém-acontecido acidente que sofrera.

Eu poderia dizer que me sinto culpado por julgá-los errado. Que aprendi uma lição valiosa sobre não julgar os outros pelas aparências. Minha professora de inglês sempre diz “There is more to people than it meets the eye”. Contudo, seria insincero.

A moral da história para mim é que se você quer se fazer de coitado, faça direto. De preferência arranque um membro. Regras não se aplicam se você não tem uma perna.

José Fluminense
Enviado por José Fluminense em 17/07/2019
Reeditado em 20/07/2019
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