TÁ MORRENDO… MAS PASSA BATOM!

Por uma década da minha vida trabalhei em instituições hospitalares. Meu ofício era a gerência administrativa, e além do meu trabalho em escritório, diariamente transitava nos corredores, alas de leitos, pronto atendimento e todos os outros setores que precisavam de alguma intervenção ou possuíam alguma demanda a ser atendida.

Não raro eu era “seduzida” por um ou outro paciente. Ou aquela criancinha que já havia perdido os seus cabelos e, devido a inquietude peculiar da idade, não queria ficar de jeito algum em seu quarto, ou aquele senhor com o sorriso amplo que desejava, insistente, fazer uma ligação para a filha que morava no exterior, ou aquela jovem que reclamava da camisola monocolor fora de moda. Cada pessoa internada ali possuía uma necessidade diferente, mas todas, um objetivo comum: sair dali sã e o mais rápido possível.

Trabalhar em hospitais possui tantos desafios que eu precisaria escrever um livro somente sobre esse tema. Mas aqui cito um dos grandes, talvez o maior dos dilemas presentes naquele contexto: a lida com a morte.

A nada agradável e desnecessária “morte” também transitava por aqueles corredores. Nós, ocidentais, não sabemos muito o que fazer com ela. E cabia aos competentes assistentes sociais, psicólogos e capelães hospitalares a responsabilidade de conduzir a família e os moribundos nessa dolorida transição.

Às vezes o silêncio do hospital era interrompido por soluços miúdos ou por gritos estridentes, reações normais daqueles que perdiam alguém que amavam.

No começo da minha jornada hospitalar isso me chocava sobremaneira. Por vezes concluía o meu expediente não só cansada fisicamente ou intelectualmente pela labuta, mas o meu coração me acompanhava em frangalhos. Com o passar dos anos, assim como o “cheiro de hospital” já não afetando as minhas narinas (já nem percebia mais o odor que misturava remédios, sangue e produtos químicos), já não sentia tanto algumas outras coisas, emocionalmente falando.

A dor do outro era sentida sim, mas de uma forma que, mantendo-me inteira, eu conseguisse ajudar sem me abalar ou envolver. E assim, lá pelos meus cinco anos de oficio, algo aconteceu que marcou a minha vida pessoal e profissional para sempre.

Aquela senhorinha já não andava e tampouco alimentava-se direito. O seu corpinho delgado sofria algum mal, que, pelo setor que estava internada, eu já havia percebido que era bem grave e irreversível.

O seu rostinho fino chamou a minha atenção. O leito que ela ocupava estava posicionado de forma que, quando eu transitava por aquela ala, eu conseguia vê-la com nitidez olhando para fora, sempre com um sorriso e olhos ternos. Aqueles olhinhos pediam algo, eu não sabia bem o quê, mas fui aos poucos sendo seduzida e ficando intrigada com aquela pergunta sem resposta: O que ela necessitava?

Certa feita, eu parei. Posicionei em frente à sua porta por alguns segundos, e vi os seus dedos finos gesticularem um “se aproxime por favor”. Andei alguns passos até a sua cabeceira. Observei que a doninha estava desacompanhada, solitária ali com as suas dores; olhei ao redor e não vi parentes, nem sinal de que alguém da sua família ou afeição a auxiliava. Ela pediu com as mãos para eu me abaixar e aproximar um pouco mais para ouvir, pois, com a fala comprometida, ela só conseguia sussurrar.

Aproximei o meu ouvido e escutei o seu pedido:

– Você tem batom?

Não compreendi direito, e percebendo a minha expressão de dúvida, ela afirmou o pedido passando os dedos nos próprios lábios, “pra lá” e “pra cá”, gesticulando como se tivesse utilizando o cosmético.

Compreendendo o seu pedido, solicitei algum tempo para providenciar o que ela precisava. Nesse interim, conferindo o seu nome escrito na placa em seu leito, localizei a enfermeira responsável pelo plantão e perguntei se havia problemas em atendê-la (não era preciosismo da minha parte; os lábios dos pacientes poderiam, em algumas patologias ou situações clínicas, servir de parâmetro para intervenções ou evolução do quadro, etc., e o batom poderia encobrir algum sinal importante). A enfermeira, achando até engraçado o pedido da senhorinha, afirmou que não havia problemas, naquele caso, em conseguir o mimo que ela almejava.

Saí daquela ala, desci dois lances de rampas e uma pequena escadaria. Mais umas boas centenas de passos, adentrei o setor administrativo daquele grande hospital, chegando em minha sala de trabalho. Revirando a minha bolsa, localizei um batom pouco usado, de um escarlate vivo, no estilo dos que eu gosto de usar. Subentendi que era isso que a senhorinha desejava, visto que já havia me observado usando cores similares e foi a mim que ela escolheu solicitar.

Fazendo o percurso de volta, reencontrei a senhora e mostrei o que havia conseguido, Ela, exultante, esforçou-se para bater levemente as mãos em palmas. Pediu, do seu jeito peculiar, para que eu aplicasse o batom em seus lábios, assim como fazemos com crianças pequenas que certamente irão borrar tudo se fizerem sozinhas. Delicadamente, após secar os lábios da senhorinha com um lencinho, passei aquela camada acarminada no contorno da sua boca, que permanecia aberta para receber o presente.

Terminado o procedimento, a embonecada paciente ainda esfregou os lábios como fazemos nós mulheres para que o batom espalhe melhor e a cor fique homogênea. Logo após, pediu para que eu aproximasse o ouvido pois queria falar algo. Seu doce murmurinho foi o seu jeito de agradecer:

– Tá morrendo… Mas passa batom!

Nessa hora eu não sabia se achava graça em retribuição ao seu bom humor ou se eu ficava sentida pelo fato dela ter a noção exata do seu estado e do fim que teria naquele lugar.

Ainda desconcertada, me despedi, e, ao me afastar, olhei para trás e pude ver por outro ângulo aquela velhinha com os cabelos platinados, as alvas roupas hospitalares, a tez sem muito sangue, os níveos lençóis cobrindo a cama também branca. A sua boca, agora pintada daquela cor afogueada, destacando-se e destoando do descorado cenário.

No outro dia, visitei a paciente mais ou menos no mesmo horário e repeti a gentileza. Ela aparentou um pouco mais de cansaço do que no dia anterior, mas o seu sorriso e bom humor estavam presentes. Observei novamente que estava desacompanhada, e a cadeira ao lado do seu leito, destinada a um familiar, permanecia vazia.

Busquei informações e descobri que ela havia sido transportada diretamente de uma casa de cuidados, similar a um asilo, só que em uma cidade bem pequena. Pelo seu fragilizado estado de saúde, o seu lugar de origem não possuía serviço hospitalar adequado para sua assistência. Até aquele momento de sua permanência, não haviam conseguido localizar parentes ou amigos próximos que pudessem acompanhá-la, por isso permanecia sozinha.

Mais um dia se passou e eu não conseguia esquecê-la. Voltei no horário de visitas, determinada a ficar um pouco mais, já que a doninha não recebia ninguém durante o seu padecimento. A encontrei com semblante sereno, dormindo quietinha e com a respiração um pouco dificultosa. Sentei na cadeira de acompanhante e fiquei ali, em silêncio, observando inebriada o seu tórax subir e descer, oxigenando o seu corpo.

Alguns minutos depois ela abriu os olhos e me encontrou com eles. Esticou a sua miúda mão e tocou a minha, e entendi que ela queria que eu a segurasse. Mostrei o batom com a outra mão e ela afirmou com a cabeça que queria ser embelezada. Passei o seu batom e ela sorriu, sem tentar pronunciar palavra. Observei que os seus olhos estavam sem brilho; era sinal que a vida estava, aos poucos, deixando o seu pequeno corpo.

Desenganada pelos médicos, restava a paciente esperar o seu destino. Ela sabia disso e parecia preparada e pronta para se entregar quando a morte viesse. Apertou um pouco mais a minha mão e eu permaneci ali, olhando pra ela e sentindo o calor da sua pele.

Passados mais alguns minutos eu senti um leve relaxamento da sua mão ainda na minha. Seus olhos cerraram-se e notei a sua respiração parar, depois de um profundo suspiro. Naquele momento, a fibra que enlaçava o seu espírito ao corpo se arrebentou. Era chegada a hora da despedida. Ela estava pronta para ir… e estava de batom.

Desde esse fatídico dia, não saio de casa sem passar o meu batom. Vez ou outra durante o dia, retoco o bendito cosmético. O objetivo não é estético, muito menos mera vaidade. Eu simplesmente nunca esqueci aquela paciente e as riquíssimas lições que ela me deixou em nossos tão parcos contatos.

Independente das dificuldades, do quão doloroso esteja seu caminho, de quantas vezes você caiu e teve dificuldades em se levantar… E mesmo que esteja absolutamente sozinho em seu percurso, sempre existirá uma esperança. Nada justifica deixar de ver a vida colorida e vibrante, de acordar pela manhã, olhar para o espelho e principalmente para dentro de você mesmo, e agradecer pela dádiva que é viver.

E, se tudo parecer perdido, sentindo que as forças já estão se esvaindo, ouça aquele doce murmurinho você também:

– Tá morrendo… Mas passa batom!

[Nivea Almeida - 17.07.2018]