CARTAS QUE ALGUÉM ESQUECEU NO MAR

Correu para a banca de jornais mais próxima e quase derrubou o sonolento jornaleiro que empilhava papel e notícias. Sem muito pensar, comprou todos os exemplares disponíveis e começou a folhear as páginas com grande ansiedade enquanto tentava fazer o caminho de volta para casa. Podia sentir seu coração galopar em frenética excitação diante das primeiras linhas lidas. Era um sucesso. Um sucesso!

– Acorda, meu filho.

Entre os delírios arrancados em pleno sonho, Júlio abriu os olhos e focou a imagem da mãe afastando-se rápida como uma ceifadora de ilusões. Levantou-se, bocejando mais por hábito do que por vontade.

No trabalho, buscou as horas para se desfazer da curiosidade. Entre uma planilha e outra, acessou o blog e aguardou. Surpresa. Mais uma interpretação rasa do que ele ainda considerava ser o seu melhor desempenho. O mesmo tom blasé de quem leu escondido a fotonovela da tia-avó. Lembrou-se do sonho e pensou no quanto uma crítica parecia ser mais concreta quando dirigida ao seu trabalho. Um soco no peito, direto no coração das ideias e ambições.

– Ainda com essa bobagem, Júlio?

A ruiva flamejante sentou-se ao seu lado, cruzou as pernas e deu mais um dos seus sorrisos de abrir cadeias. Patrícia era sua amiga há tanto tempo que desconhecia os limites entre a sinceridade e a crueldade pura e simples.

– Nem vou discutir com você, Paty. – Frisou o apelido sabendo que a ruiva odiava ser chamada assim.

– Deveria parar de gastar seu tempo com essa besteira e se concentrar no que realmente importa.

– Em você? – Júlio sorriu malicioso e provocador. – Pois, eu me lembro que alguém não achava tudo isso uma besteira na época do colégio. Aliás, você escrevia muito bem. O que aconteceu?

Patrícia descruzou as pernas e levantou-se firmando sua beleza sobre os saltos altíssimos. Não sorria mais, apenas franzia a testa de forma a concentrar linhas e censura.

– Bom, faça como quiser, mas não se esqueça da reunião. Daqui dez minutos, todos os interessados…

Júlio levantou-se e aproximando-se da amiga instalou um beijo em sua face sardenta. A maquiagem mal escondia os sinais enferrujados do sol. A pele era macia e quente como convinha a uma felina.

– Aviso recebido. Tenha um ótimo dia, querida.

Olhou Patrícia afastar-se altiva, mas furiosa. Desta vez, fechou a porta e concentrou-se na busca do próprio pseudônimo: Charles Fox. Devia ter optado por receber os comentários por e-mail.

Lá estava o seu texto, nem tão curto nem tão longo, apenas na média das palavras exigidas. Correu o mouse para o fim do conto até encontrar a margem inferior. Os primeiros críticos tinham sido diplomáticos, mas pouco acrescentaram. O último despejara sua opinião com a sua acidez já conhecida pelos aspirantes a escritores. Balançou a cabeça quase conformado. Não era um sucesso.

Júlio fechou a janela do blog e preparou-se para a reunião. Permaneceu na conferência mais corpo do que mente, repetindo frases que lhe dariam algum crédito e sossego. Todos pareciam concordar com suas ideias, talvez apenas para poupar esforço e adiantar a sexta-feira que se inclinava no horizonte.

No fim do dia, Júlio voltou para casa, mais afoito do que o normal. Largou pasta e cansaço no sofá e conectou-se ao maravilhoso mundo da internet. Leu alguns dos e-mails para disfarçar a própria impulsividade e por fim, abriu o blog. Sorriu para a moça de cabelos pretos e curtos que fazia parte da imagem escolhida para o desafio do mês. Perfeita recepcionista dos sonhadores.

Do lado direito da tela, uma pequena lista revelava novos contos a serem lidos. Júlio suspirou, na verdade, bufou aflito com a falta de tempo. Ou melhor, de disposição para ser o leitor ideal. Só lhe interessavam as cartas, aquelas que alguém esquecera.

Releu o décimo conto postado e sentiu uma estranha familiaridade, uma onda de calor atingiu sua coluna e alojou-se na nuca como um pressentimento tardio. Aquelas palavras carregavam poesia na medida certa, ou talvez incerta, o que desnorteava aquele leitor.

Não foi assim uma grande surpresa, mensagem em garrafa envelhecida pelas ondas. Eram palavras, fagulhas de uma fogueira que ardeu antes da água tomar posse. Verdades de alguém que se deixou levar pelas marés.

Aquelas palavras pareciam encaixar-se ao acaso em uma narrativa delicada e instigante. Fugiam do tema, talvez por pura rebeldia. Falavam de paixão e mar, de mensagens vindas de um mundo desconhecido. Júlio admirava a coragem de quem se despia de preconceitos e atirava-se ao fogo da própria criação. Parecia ser alguém que dominava a linguagem, desviando-se dos chavões e dispensando erros. Talvez fosse um revisor aventurando-se na terra dos perturbados escribas. Não, ali havia mais do que técnica pura. Mistério e densidade mesclavam-se em um enredo inesperado.

Mais tarde, após deglutir jantar e ansiedade, Júlio esticou-se na cama e leu os comentários sobre o seu conto preferido até então. Pareciam multiplicar as opiniões divergentes. Uns adoravam e apontavam as qualidades inerentes ao conto. Outros dissecavam enredo e figuras de linguagem, mostrando-se desapontados com o final que julgavam insosso e inadequado à trama.

O pseudônimo pouco revelava: J. Fontes. Poderia ser tanto um homem quanto uma mulher. Pela caligrafia imaginada, apressada e quase sutil, Júlio desconfiou que se tratasse de uma escritora. Algo nas palavras puxavam lembranças da sua memória. Como se aquelas cartas fossem dirigidas a ele, ou o que era ainda mais assustador, como se ele as tivesse lido há muito tempo, em um universo paralelo.

Lara, apareceu de repente com seus olhos de coruja mãe, rodeando cria e rotina. Júlio encolheu as pernas e fez sinal para que ela se sentasse ao seu lado. Sem dizer uma só palavra, apontou para o texto na tela do seu notebook. A mãe, forçando um pouco visão e compreensão, pôs-se a ler o primeiro parágrafo.

Esperarei por mais dois dias ou três. Tomarei fôlego e abrirei espaço para mais uma jornada. Quando a maresia me despertar, colherei conchas e perdoarei. A mim, talvez, por desejar tanto poder ficar.

– É uma mulher. – Afirmou sem mostrar dúvida alguma.

– Por que acha isso?

– Mulheres escrevem com o útero.

Júlio bufou e olhou estarrecido para aquela que havia gerado e criado sua vida. Mesmo compartilhando da mesma desconfiança, precisava esboçar alguma reação contrária. Por hábito, puro hábito.

– Como se só as mulheres detivessem a sensibilidade? Conheço alguns homens que te surpreenderiam com palavras uterinas e que nem por isso deixam de ser o que são: grotescas versões de vocês, as deusas.

A mãe deu de ombros e se levantou satisfeita com o seu momento. Os homens podiam ser muito cegos às vezes. Incrivelmente cegos.

– Então, chame de intuição feminina. Foi uma mulher que escreveu isso aí. Alguma vez me enganei?

Não, ela nunca se enganava. O que constituía em sua característica mais irritante: a falta de falhas de percepção. Lara defendeu a autoria feminina pois ali pousavam as sombras de uma paixão. Dessas que só poderiam ser descritas por alguém que possuísse criação em corpo e alma. Júlio concordava com ela, tinha de admitir para si mesmo. Então, J. Fontes era uma mulher. Pontos luminosos ligaram-se quase de imediato. Ele agora sabia de onde vinha o canto distante da sereia.

Assim que a mãe afastou-se ostentando seu sorriso de superioridade e sabedoria, Júlio pegou o celular e fez a ligação. Do outro lado, o insistente toque denunciou alguma demora e hesitação. Até que uma voz mergulhada em alguma espécie de encantamento e sonolência, dispôs-se a responder com um simples alô. Era uma mulher, sem dúvida.

– J. Fontes? Gostei muito do seu conto

O silêncio precedeu o espanto e o titubear de palavras. Coisas desconexas foram ditas em defesa de uma privacidade já rasgada em risos.

– Reconheceria aquelas cartas mesmo que mergulhadas no mar de todos os séculos

– Claro que sim. São suas…

A voz rubra tal e qual os cabelos. Patrícia parecia sorrir com as palavras ouvidas desnudando-se por completo de pseudônimo e pudor.

Então, a próxima onda arrastou dúvidas e desconforto. Uma ligação que durou horas, no meio da noite, entre dois escritores, ou melhor, aspirantes a escritores. Um homem e uma mulher que sempre se viram e nunca se leram. Mergulhadas no mar do acolhimento, estavam ali as cartas que ninguém mais esqueceria.

Claudia Roberta Angst
Enviado por Claudia Roberta Angst em 16/08/2019
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