"JUSTIÇA" CEGA

OBS: este conto foi inspirado por 3 notícias distintas... uma crônica antiga tratando do processo da jovem -- apelidada de "Maria" -- cuja desdita descrevi no cordel "Chocolate muito Amargo", publicado no portal RECANTO DAS LETRAS em 20/07/2017, além de 2 decisões recentes da Justiça, o STF, se não me falha a memória. Em um caso nada viu de anormal no ex-ministro flagrado com 53, digo, 51, aliás 50 MILHÕES de reais "guardados" em casa e, no mais recente, a soltura de prefeito envolvido com a "Máfia da Merenda Escolar", a tal que teria desviado mais de 10 milhões de reais. E é nessa Justiça (?!) que temos que confiar ! (NATOAZEVEDO)

"JUSTIÇA" CEGA

"Não creio em mais nada, me acostumei

na caminhada sozinho,A vida toda só

pisei em espinho, já descobri que o meu

destino é sofrer". - PAULO SÉRGIO

(trecho de "Não creio em mais nada")

A cidadezinha paulista de Mauá acordou em polvorosa... enfim pegaram a ladra que vinha dando prejuízos ao comércio local, principalmente supermercados e padarias. Amanheceu numa cela da modesta Delegacia de polícia, onde nada acontecia fazia tempo. Com uma das janelinhas dando pra rua adjacente, o povo desocupado fazia filas só para uma "olhadinha" na sem-vergonha. A população até esquecera que, no mesmo dia, voltara ao lugarejo o prefeito em cuja casa achara-se 80 mil reais... numa panela de pressão.

-- "Comidinha" cara, essa, do prefeito" !, ironizavam.

Um juiz do Supremo o soltara, tinha residência fixa (ao contrário da jovem) e bons antecedentes, coisa que a ladra nem imaginava o que fossem. Afinal, na "máfia da Merenda Escolar" êle era peixe pequeno". Outro alcaide fôra preso com mais de 4 MILHÕES de reais "debaixo da cama", além de euros e dólares. Tudo começou na tarde anterior, quando a jovem adentrou na loja disfarçando, precavida, preocupada e atenta aos movimentos dos 2 seguranças. Grávida de 6 meses, já ostentava o "barrigão" de futura mamãe. Comprou apenas 1 "shampoo" barato, quase meia hora zanzando pelos corredores.

Ao passar pela porta magnética recém-instalada na saída, soou o alarme... os seguranças "voaram" sobre ela, tinham sido alertados em relação á figura. Arrastaram para dentro também a irmã, que a esperava lá fora, não houve outro jeito, andavam sempre juntas, eram realmente inseparáveis. Na falsa "barriga", de plástico e tecido lee, espuma e espaço para 1 lata de Leite Ninho e 1 embalagem de margarina, menos de 10 reais de prejuízo. Isso se resolvia pondo a jovem para "faxinar" a loja após o expediente, mas tudo findou nas mãos do delegado. Não houve testemunhas do furto nem filmagem, somente a palavra dos fiscais e do gerente.

A nova juíza da Comarca estava na cidade há poucas horas e marcou-se o julgamento do caso para daí a 3 dias, num sábado á tarde. O Forum lotou, nem aniversário da Primeira Dama, a "perua' mais petulante do lugar, dava tanta gente. Parecia festa, mas o drama estava só começando... poucos sabiam que a jovem -- já mãe -- deixara a criança sob os cuidados da dona de um "muquifo", pardieiro horrendo no qual a moça se alojava. Na cidade todos a conheciam como uma desocupada, quase mendiga, não afeita a nenhum trabalho. Não havia pena, compaixão, nos olhos de nenhum curioso, era preciso uma lição drástica na "vagabunda". A nova magistrada percebia a agitação geral e a expectativa da população presente ao julgamento. Sem dinheiro nem noções, lhe arranjaram defensor público da cidade, que a conhecia de longa data, fizeram o Primário juntos, que ela não concluíu.

Aberta a sessão, o promotor de defesa veio com uma "novidade" que surpreendeu a quase todos os que pouco a conheciam, vista como mera "mendiga".

-- "Ilustres membros do Júri (pelo tom de voz do advogado os jurados tremeram), prezado Promotor de acusação, senhora Juíza... minha cliente tem grave declaração a fazer. Pode falar, Maria Lúcia" !

-- "Eu não sou a Maria Lúcia... sou a Lúcia Maria, Excelência" !

-- "É... Meritíssima, mocinha" !, corrige a magistrada.

-- "Meritíssima Excelência, foi minha irmã quem roubou, sou inocente" ! (Soaram gargalhadas gerais !)

O promotor de acusação, dono de uma padaria que a jovem "visitara" algumas vezes "surrupiando" coisas, pulou da cadeira:

-- "Que palhaçada é essa, que "teatrinho" barato" ?!

-- "Contenha-se, promotor... o senhor não foi chamado a se manifestar ainda" !

E conclamando a defesa cochichou entre dentes:

-- "Queres transformar esse caso num "circo" ?! Olha que posso puní-lo por obstruir a Justiça" !

-- "Sinto muito, Meritíssima, não foi essa a minha intenção... a moça é "bipolar", tem dupla identidade, sei disso porque estudamos juntos na infância" !

-- "Ah, meu Deus... onde fui "amarrar meu burro". E o que a Sr. sugere que eu faça agora" ?!

-- "Solte a moça, não há alternativa" !

-- "Enlouqueceu, causídico... ela será linchada e eu também ! Isso está fora de questão" !

-- "É só "pro forma", magistrada... lá dentro convenço "a outra" a se apresentar ao julgamento" !

Nesse momento o burburinho era geral e virou "arquibancada de futebol" com torcidas rivais assim que a juíza determinou a soltura.

-- "Silêncio no Tribunal ou boto todo mundo pra fora" !, mas poucos a ouviram, boa parte correu pra rua, à espera da saída da ladra liberada. No "parlatório", na área interna, ainda cercada pelos guardas receosos de uma fuga, o advogado argumentou:

-- "Querida, para você ficar livre, preciso que a Maria Lúcia esteja aqui, você me entende" ?!

Os olhos parados da moça, pupilas negras, pareciam lagoa milenar onde nada transparece. Por breve "eternidade" ela permaneceu em silêncio e "disparou":

-- "ROUBEI, roubei sim... minha filha tinha fome" !

Advogado e cliente (agora ré) voltaram, os que foram à rua -- estranhando a demora na saída da acusada -- retornaram decepcioados:

-- "Senhorita Maria Lúcia, o que tem a dizer em sua defesa" ?!, inquiriu a juíza, ressabiada com o que iria ouvir, o populacho querendo sangue.

-- "ROUBEI para dar de mamar pra minha filhinha, meu leite secou por faklta de alimentação. Mas, ladrão é quem tem meios e formas de ajudar e não faz. Ladrão é quem comanda programas sociais para cuidar dos necessitados da cidade e só escolhe quem não precisa. Me negaram comida, me negaram trabalho, me negaram benefícios que quase TODOS VOCÊS -- e, dedo em riste, apontou platéia e júri -- recebem, bando de LADRÕES. E você, padeiro de merda... )apontando o promotor de acusação) quer me acusar de ROUBO ?! Cobra da Prefeitura o triplo dos pães que fornece pra Merenda Escolar" !

-- LADRÕES, como ousam me julgar ?! O dono da farmácia tem remédios que deviam estar no hospital da cidade, os de mercadinhos arroz e biscoitos que seriam da Merenda e assim vai... e a ladra sou eu ?! Negaram creche pra minha filha, me negaram tudo, seus desgraçados. Vão pro Inferno todos vocês" !!!

A Juíza se viu bem perto de um linchamento, precisava encerrar o tumulto de qualquer maneira. Olhou para os jurados, ódio estampado nas faces e não teve dúvida. Batendo o martelo com força na mesa, berrou:

-- "Condenada a 3 ANOS e meio, sem "sursis" ! Cumpra-se a sentença e esvaziem o Tribunal" !

Em menos de 48 horas a jovem foi transferida da cidade para uma Penitenciária feminina, na capital, enquanto o advogado recorria da sentença junto ao Supremo, depois de perder os recursos que interpoz no Estado. Na cela com outras detentas, cabelos cortados, olhando estrelas por estreita janelinha de 2 palmos Maria Lúcia analisa os "descaminhos" de seu Destino e chora copiosamente. Seu neném foi destinado à doação, ela nunca mais verá a filha. Um rádio em algum lugar lhe traz, em ondas sonoras, a amarga letra de antiga canção: "Aqui, onde você me deixou... / aqui onde agora eu estou, / aqui, onde o Mundo é tão triste, / onde a felicidade não existe / é aonde eu estou" ! Sente falta da "irmã" e, sem parentes, ninguém a visita.

Na cidadezinha -- olhando as estrelas e ouvindo a mesma música -- o advogado lamenta a profissão que escolheu, com o ofício do STF nas mãos NEGANDO liberdade provisória à pobre louca. Uma lágrima furtiva lhe escorre pelo rosto... pois é, a Justiça é mesmo CEGA !

"NATO" AZEVEDO (em 29/julho 2019, 21 hs)

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ADENDO AO TEXTO - para fazer disso um filme é preciso bem mais do que uma cidadezinha atraente e com população participativa. Será necessário um embasamento para a atitude presente da moça, mostrando cenas dela já meio "aérea e desligada" no Jardim de Infância, assinando "errado" o próprio nome nos cadernos e provas e sem atender ao chamado dos professores ou demorando a fazê-lo.

Pode-se criar diálogos e eventos, mas o principal é uma atriz que "segure o papel" com unhas e dentes, além de se excluir citações a prefeitos e quejandos, a liberdade de expressão acabou no Brasil, ninguém se iluda. Porém o tema "desvio de verba pública" é UNIVERSAL (epa !) e o apelo de um bom filme pode levá-lo longe ! Sugiro as atrizes Bianca Bin ou Débora Falabella ou Juliane Trevisol para o papel principal, embora a idade da personagem seja de uns 25 anos. Quem se habilitará a realizá-lo ?! Eis um filme que eu faria, se tivesse dinheiro !