C a d u c a n d o

Gostava de ficar pensando na rede. Era velho, já estava no outono da vida. Nunca tivera mordomias, bens, riqueza, luxos... Mas, por outro lado, sempre vivera cm uma certa dignidade. Mesmo em meio às dificuldades sempre se sentiu um homem digno, nao prejudicara ninguém, não caluniara e nem se apequenara sendo subserviente a quem quem que seja. Sempre combatera os tiranetes de plantão. Nunca pisara em ovos. Tudo bem, fora meio empata-samba e arengueiro, mas na base do sem ódio e sem medo, sem descambar para a raiva, o rancor, a violência. E sempre - isso o alegrava muito - estivera do lado da corda mais fraca, dos mais humildes. Tivera, claro, as suas fraquezas. Algumas até ridículas. Quem nesta vida, pensava, nao pisou na bola? Não, não era santo, até porque nao existiam santos, a não ser santinhos do pau ôco, desses que o rabo de palha arrasta pelo chão.

Gostava de olhar o céu à noite. Saía da rede, abandonava os livros ou a revistinha de palavras cruzadas e ia olhar para o céu, ver as estrelas e a lua. E quando uma estrela piscava ele ria como fazia ns tempos de crianaça. Nisso e em muitas outras coisas continuava um menino grande. Ele achava que quem não repetia alguns atos de criança era sem dúvida um canalha. Achava que o caráter de um homem se formava na infância. Quando olhava para o céu, à noite, ele tinha a certeza absoluta da existência de Deus. Não, não precisava de religião para crer em Deus, na Força Superior, a ele bastava olhar para o céu. Era o bastante.

Quando saía dessa contemplação que acreditava também ser uma conversa com Deus, sentia-se renovado e com as forças retemperadas, então quando voltava para a rede, mesmo desafinado paca, cantarrolava baixinho um verso do samba antológio de Gonzaguinha: "Viver enão ter vergonha de ser feliz/ E cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz/ Ah, meu Deus!/ Eu sei/ Que a vida devia ser melhor e será/ Mas isso não impede/ que eu repita/ É bonita/ É bonita/ É bonita".Depois tirava um cochilo. E priu. Inté.