O pecado de quem não pecou

Naquela ensolarada tarde de sábado, mais uma vez a adolescente se despediu da mãe em frente ao portão de casa acompanhada pelo olhar atento e cheio de curiosidade da vizinha do lado esquerdo, que costumava passar tardes ociosas sentada à calçada numa confortável cadeira de espaldar amplo. A jovem abraçou a matrona de forma afetuosa e logo seguiu para o seu primeiro destino, o ponto de ônibus mais próximo.

De longe dona Neide seguiu a silhueta esguia da amada filha subindo a rua até que desaparecesse de suas vistas. Viúva há cinco anos, a senhora vivia da modesta pensão deixada pelo marido — um exemplar funcionário dos Correios — e preparava bolos sob encomenda para complementar sua renda. Graças a Deus ela própria não carecia de muita coisa, enquanto a filha, "oh, que menina boa e humilde", não gostava de se pintar ou comprar roupas caras como faziam as moças da sua idade, dezessete anos, nem tinha namorado. Vestia-se normalmente de camiseta e calça jeans, embora naquele sábado houvesse colocado um vestido discreto, e gostava de ajeitar seus longos cabelos louros num rabo de cavalo. Porém, o que mais chamava atenção na figura da jovem eram seus grandes e insinuantes olhos verdes herdados da avó materna. Atualmente dona Neide tinha em Marina, sua filha, seu único ideal de felicidade. A senhora de tez clara e baixa estatura sempre dizia aos parentes, amigos e vizinhos: "Se Deus me der força e saúde, eu hei de ver a Marina formada médica".

Algum tempo já havia se passado quando mais dois vizinhos, um homem idoso e uma mulher um pouco acima do peso, vieram se juntar à senhora sentada ao passeio.

— Gente — dizia a dona da calçada — eu não sou de fazer fofoca não, mas, andam dizendo por aí... e como se quisesse fazer suspense ou tivesse um pouco de receio, fez uma longa pausa antes de prosseguir. Por fim, disse baixando um pouco o tom da voz: Andam dizendo que a filha da dona Neide virou garota de programa, e até já viram ela saindo de um motel com um casal. Como costumo ver televisão até tarde no sábado, eu mesma já a vi chegando em casa só de madrugada, acompanhada sempre de um casal que a trazem de carro. Não sei a marca do carro, mas parece um carrão.

— Indecência! — resmungou a mulher com sobrepeso. E eu achava que aquela menina era uma santa. Ah, que santa do pau oco!

— Bonita como aquela cabrita é, logo ela arruma um corno manso rico para casar — comentou o idoso.

— Qualquer dia desses ela vai acabar é sendo 'estrupada', se é que já não foi — observou novamente algo raivosa a mulher acima do peso.

— Essas meninas de hoje não têm cabeça mesmo. Coitada da dona Neide! — lamentou a vizinha dona do passeio.

Ao saltar do ônibus, Marina ainda teve que andar por mais três quarteirões até chegar ao endereço desejado, Rua dos Desventurados nº 215. Apertou a campainha e a senhora que veio atender a recebeu com alegria e um longo abraço.

A jovem recém-chegada conhecia bem o interior daquela grande casa, e por isso atingiu a espaçosa cozinha sem nenhuma dificuldade. Na cozinha encontrou mais duas mulheres maduras usando um avental e touca, que ao vê-la também a abraçaram. Para completar o grupo, um casal um pouco mais jovem do que as senhoras chegou logo depois de Marina.

A filha de dona Neide cortava e picava legumes em uma grande mesa, enquanto um caldeirão posto num velho fogão de duas bocas largas esperava pelos ingredientes.

Na verdade, Marina e o resto da equipe eram voluntários num trabalho mensal de distribuição de sopa, cobertores e outros mantimentos para moradores de rua.

Depois de prepararem a sopa e colocá-la em embalagens térmicas descartáveis, saíam às ruas da cidade em busca de pessoas que estivessem com fome e frio. Terminada a peregrinação caridosa, voltavam para a casa e deixavam a cozinha limpa, por isso não era raro que o trabalho terminasse só depois da meia-noite.

O gentil casal desde o início se dispusera a levar a jovem Marina em segurança para casa.

Pela janela da sala, a vizinha da esquerda viu quando Marina chegou já tarde da noite acompanhada pelo casal de amigos, e talvez por estar tão distraída com a aguardada chegada da filha de dona Neide, não pôde perceber que o seu marido e a enteada trocavam tórridas carícias num quartinho que fica nos fundos da residência.

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ESPAÇO DAS INTERAÇÕES

Quem aos outros vigia,

e da própria vida esquece,

certamente vai um dia

receber o que merece.

(Jogon Santos)