Nada pessoal

Eu acordei de madrugada com a alarme do meu carro soando, um barulho aumentado várias vezes por rasgando o silêncio da noite, pulei da cama de sobressalto e fui em direção a janela com vista para a rua, olho por uma fresta e vejo os faróis piscando e vejo um sujeito correndo, sujeito alto, magro, coberto por andrajos e correndo desesperadamente, na direção de uma ponte, onde alguns moradores de rua moram debaixo da ponte.

Saio da janela e em seguida do meu quarto, apanho as chaves encima do armário, no entanto, eu paro em frente a porta e volto para o quarto, abro o meu guarda-roupas e apanho um canivete, afinal de contas, nunca se sabe, poderia ser muito bem um chamariz para que eu dessa e seja sequestrado, ou até mesmo morto, eu acho melhor prevenir. Saio pela portaria do prédio e olho para todos os lados, o alarme do carro ainda está tocando e eu decido deixar tocar até que eu chegue até ele, caminho lentamente até o portão e vagarosamente eu o abro, já do outro lado das grades, eu desligo o alarme e avalio o veículo, aquela sombra que saiu correndo quebrou o vidro do meu carro; nessa hora, eu não consigo deixar de me culpar, pois, como eu pude não ouvir o som do vidro do meu carro sendo quebrado?

Olhei o relógio da rua e já marcava quatro e quinze da manhã, sendo assim, eu abri a porta do carro e entrei, com a intenção de ficar lá até o sol raiar, para não deixar o completamente aberto, eu olhei o carro por dentro, tudo parecia estar no lugar, o alarme dever ter assustado antes que roubassem o rádio por exemplo, só para ficar em paz com o destino, eu ligo o radio naquelas estações que ficam traduzindo músicas românticas em tempo real e enquanto escuto a mensagem de amor, eu penso, “não Cícero, ela não te quer.”

Acordo num breve susto, olho no relógio e vejo que já são oito e meia da manhã, a rua já está movimentada, avalio que está tudo no lugar dentro do carro e comigo, eu saio do carro e volto para dentro do prédio e para a minha casa, já em casa, eu ligo para um mecânico conhecido meu e agendo para poder levar o meu carro ainda naquela manhã.

Eu olhei por alguns segundos o recibo com o valor que gastei no mecânico, olhei como se eu tivesse sido roubado, não pelo mecânico, mas, por aquela sombra que quebrou o vidro do meu carro, afinal, se não fosse ele, eu não precisaria ter gasto um dinheiro que eu não estava preparado para gastar, guardei o recibo na carteira, me despedi do mecânico e saí com o carro de volta para casa. Chegando em casa, eu tiro a carteira do bolso e a jogo sobre o móvel, o papel do recibo se destacando, saindo da carteira, fez com que eu pegasse ele e desse mais uma olhada, por um breve momento, eu pedi para que Deus me desse a chance de me vingar, talvez, eu tenha desejado isso, por saber que seria impossível, que eu nunca teria qualquer chance de fazer algo a respeito e se fosse o caso disso acontecer, teria que ser por meio de alguma coisa além da lógica.

Deitei o recibo do lado da carteira e fui me deitar um pouco no sofá, pois mesmo tendo conseguido dormir dentro do carro, eu me sentia como se eu não tivesse dormido nada, deitei a cabeça sobre o braço do sofá e me cobri com um casaco que eu havia deixado encima do móvel. Consegui dormir por mais umas quatro horas, fiquei um pouco no sofá e decidi enfim me levantar em torno das dezoito horas, levantei-me, fui tomar um banho e me vestir para dar uma volta. Pois, preciso refrescar um pouco a cabeça, foi um dia cansativo e até mesmo frustrante. Depois de me arrumar, apanho novamente as chaves e a carteira e saio pela porta...

Assim que chego na portaria, eu escuto novamente o alarme do meu carro disparando, aquela frustração que senti a principio se torna uma raiva tremenda, eu saio correndo em direção ao portão, já remexendo os bolsos atrás das chaves, dessa vez, eu não havia pego o meu canivete, mas, não me importei, novamente eu vi a sombra correndo, se afastando do meu carro, no entanto, desta vez eu corro atrás da sombra. A princípio, eu até acredito que terei certa vantagem, pois eu olhei os pés da sombra e vi os chinelos velhos, mas, pelo visto a experiência contou bastante. De qualquer maneira, eu não diminuo a minha busca. Eu vejo a sombra começar a se camuflar na sombra debaixo da ponte, mesmo assim, eu corro sem me importar pelo lugar onde entrarei.

Extremamente ofegante, pois o sedentarismo cobra o seu preço, eu chego debaixo da ponte me apoiando na parede e tento olhar em volta, procurando uma sombra específica em meio a outras sombras, distribuo gritos inquisitivos, “Eu sei que você está aí!” Percebo que algumas sombras começam a acordar com os meus gritos, logo, uma sombra duas vezes grande se ergueu, grande pelo próprio tamanho e grande devido ao amontoado de roupas que vestia; a sombra maior me perguntou o que eu procurava ali, então, eu expliquei a situação e expliquei como era a sombra que eu procurava, percebi que a minha descrição que por si só já era pobre, naquele ambiente não adiantava de nada, ainda assim, a sombra maior me ouviu cuidadosamente e para minha surpresa ele disse que me conhecia, que já havia me visto várias vezes e que sabia onde eu morava. Expliquei novamente a situação apelando para uma questão de boa vizinhança e a conversa tomou novos tons.

A tal sombra, apesar de estar envolvida pela sombra do ponte misturada com a noite, demonstrou por um olhar muito mal iluminado por uma fogueira distante, a indignação pelo que eu estava contando, afinal, ele parecia controlar tudo ali, cada uma das sombras ali presente e ele tinha uma política para vizinhos, se posso dizer assim, logo, ou alguém havia desrespeitado ordens dele, ou havia alguém que não fazia da família dele, de qualquer maneira, se tratava de um problema grande. Eu optei por aguardei a decisão dele, ele virou o olhar escuridão adentro, como se procurasse de forma panorâmica, olhou por uns cinco segundos e então, virou o olhar para mim, me disse para ir embora, que ele resolveria aquilo.

Fiz um movimento com a cabeça, concordando com ele, movimento que eu não creio que ele tenha notado, acenei e sai da escuridão. Voltei para o meu carro, e decidi levar ele para um estacionamento numa rua próxima dali, conversei a respeito da situação com quem estava cuidando e ela me fez um pequeno desconto, mais por consideração, do que pelo valor em si. Eu saí pela rua, em direção a minha casa, havia perdido a vontade de dar uma volta, mesmo porque, eu já tinha da do uma volta e tanto. Finalmente o dia seguinte chega e eu já desperto pensando no gasto para arrumar novamente o vidro do carro, de qualquer maneira, eu saio cedo em direção ao estacionamento para retirar o meu carro e assim que saio na rua, do outro lado, eu vejo a sombra maior da noite passada, agora eu o vejo bem, um senhor de pele branca coberta por sujeira, barba grande e vestido com roupas por cima de roupas, ele acena com a cabeça, eu aceno de volta.

Chego no estacionamento e o rapaz do turno da manhã me dá a chave do carro, pego ele e saio tranquilamente, procurando estacionar o carro no lugar de costume, paro lentamente em frente a porta do prédio e ao sair, eu vejo um morador de rua deitado no chão, recostado na mureta, quando eu olho com mais calma, vejo que há um corte grotesco no pescoço, olhei para o outro lado da rua novamente e o velho me olhou antes de sumir em direção a debaixo da ponte, eu olhei novamente para o corpo na rua, devia ser um garoto de uns catorze anos, fechei os olhos, respirei fundo e virei em direção ao meu carro para então abrir os olhos, só depois sussurrei para mim mesmo... “Não foi nada pessoal.”

Henrique Sanvas
Enviado por Henrique Sanvas em 07/12/2019
Reeditado em 07/09/2020
Código do texto: T6813133
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