Retrato de um estranho

Era de uma beleza humilde. Com um rosto que pedia piedade a toda humanidade, como se esperasse um abraço. Os olhos de um animal triste e desolado, enfim olhos de um boi. O corpo, porém, destoava da cena, era forte e inspirava desejo. Essa espécie de piedade que temos pelo nosso corpo que pede outro.

Se seu rosto representasse o paraíso logo saberia que é um lugar de tristeza, melancólico, já o corpo, o baixo, sempre representado como profano inspiraria como sempre desejo. Enganam-nos: o corpo é o paraíso.

Continuo: Tez morena, estatura mediana de complacência magra. Blue jeans, white shirt. a la James Dean. Eram esses os outros detalhes mais ordinários. Não era alto e sua presença não causaria qualquer impressão.

Há pessoas que intimidam. Ele e eu, acredito, não intimidamos ninguém, outro fato que torna nossa reciprocidade prolífera.

No fundo sou tocado pela primeira impressão: o seu olhar perdido. Preciso dizer que ele estava cercado de gente, mas não havia companhia. Estava só, porque talvez seu espirito fosse solitário. Não. Talvez eu seja o solitário e possa reconhecer outro como eu.

Dá-me tua mão! Sem que você saiba, já me é íntimo.

_ ah como me custa sentir

Eu lhe diria se pudesse: __ você não está só!

Sem perceber eu estava me ligando a você

Mas por outro lado penso que se assim me olhassem, essa espiadela na alma, eu me sentiria violentado. O meu espirito é a única coisa que me resta. Meu.

Só me interessa o olhar do desejo. Não quero o olhar de quem quer descobrir o que há dentro, o que há de mais íntimo.

A coisa toda não durara alguns segundos e eu era obrigado a deixa-lo, pois poderia perceber que lhe investigava a alma, que eu o sentia.

A mim muitas vezes cabe a sombra, não me revelar.

Tento ser detetive de filme noir, mas não ganho nada, ainda mais para chegar a conclusão que o homem está só. É infrutífero o trabalho, descubro o que já sabia.

Disfarça o que você é como todos o fazem, não conte os segredos que querem esconder.

Se me encarassem, sentiria me violentado. Só quero os olhos desejos! Não o olhar de quem quer descobrir o que há dentro, o que há de mais íntimo. .

É com o corpo que vivo o mundo, mas o que há dentro de mim é sagrado. Eu sem permissão intrometo-me a buscar o que o outro carrega dentro de si.

Eu disse à vida: Mundo nas tuas mãos entrego meu corpo. Receba este corpo! Mas fico sem saber lidar com o mistério.

Esqueço-me e deixo o homem livre, e assim me torno livre novamente. Por mais duro que seja.

Estou cansado de mim, estranho. Se eu soubesse que você poderia me ajudar, lançaria me em você, mas sei que estamos, eu e você, no mesmo barco, em nosso desespero mudo.

Sérgio da Luz
Enviado por Sérgio da Luz em 14/12/2019
Código do texto: T6818803
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.