A FORMIGA

Rodrigo Gurgel, professor, escritor e crítico literário de altíssimo nível, disse em seu artigo "7 reflexões sobre a arte de escrever" que OBSERVAR É FUNDAMENTAL. O ESCRITOR DEVE SER UM MESTRE NA ARTE DA ATENÇÃO".

Sobre essa premissa, ele ressalta que não basta ter boas idéias, ler muito, gostar de escrever ou ter inúmeras gramáticas em casa. A realidade é nosso espelho criativo e inspiracional para a verossimilhança; portanto, deve ser muito bem observada.

Vagarosamente tenho percebido que contas atrasadas na ficção tem maior impacto que monstros cósmicos.

Num caso que me fugiu a memória, Sherlock Holmes e Watson discutem sobre a visão dos homens. Holmes menciona que "TODOS VÊEM. POUCOS OBSERVAM." Watson discorda. Nesse ponto o grande detetive lhe pergunta quantas vezes seu companheiro subiu a escadaria que dava acesso ao seu apartamento. O dr. Watson disse: "Várias. Centenas." Então Holmes pergunta algo que parece pequeno, mas revela algo grandioso:

"Sabe de cor quantos degraus ela tem?"

Tendo dito isso, vou contar uma história.

Após um tempo de desemprego, fui fazer um bico de remuneração no mínimo suficiente para suprir as lacunas financeiras. Após terminar o serviço, não recebi no dia.

Confesso que naquela hora, ao invés de gratidão por conseguir garantir um dinherinho até final de ano e pelo prazer de sair de um limbo de ócio inútil, a murmuração foi a opção mais próxima.

Comecei a lembrar dos problemas que enfrentei nesse ano. E cá entre nós, Einstein estava certo em sua teoria da relatividade. Já que uma hora num parquede diversões ou com alguém que amamos conversar parece um minuto e um minuto esperando alguém atender o telefone, a internet funcionar, ou debaixo d'água pode significar a eternidade personificada.

Agora imagine o que não poderia acontecer de bom e de ruim em um ano com 12 meses com 52 semanas com 365 dias com 8.760 horas com 525.600 minutos com 31.536.000 segundos? Coisa pra burro!

Nas digressões tristes, onde a psicologia já informa que quando estamos tristes o cérebro é ativado para nos trazer memórias de fatos tristes trazendo cargas emocionais tristes para ficarmos ainda mais... tristes (Basta fazer o teste. Perca o ônibus para ir ao serviço. Você recordará do triste dia em que acordou atrasado, do momento em que não tirou a carta, do porquê casou, enfim...).

Retomando...

Frustração. Impotência. E diante das vicissitudes que ainda não venci, dos traumas não superados e das questões não solucionadas em minha vida... abaixei a cabeça e lamentei:

"Oh Deus! Me ajude! Será que vou conseguir suportar tanta carga sobre mim?"

Pra piorar, enquanto caminhava com passos vacilantes com o chinelo de dedo cascavelando rés ao chão, o céu lacrimejou por alguns momentos um pouco de chuva. Não sei se por compaixão com meu momento, ou por ironia.

Cego por uma espécie de óculos de grau que focava apenas na minha dor e com fones de ouvido para meu próprio queixume, de repente vi uma cena no mínimo inusitada.

O chão da calçada por onde andava estava com algumas folhas secas. No entanto, uma se mexia. Estranhei, já que não ventou um momento sequer e ela movia-se lentamente.

Ao prestar mais atenção, notei que se tratava de uma diminuta formiga carregando uma pequena folha. Porém a folha era pequena aos meus olhos. Só que era vinte vezes maior que o inseto trabalhador.

Por rápidos segundos apreciei aquela obra da natureza. Continuei meu caminho.

Nesse instante um lampejo de inspiração motivacional me viera. Parei. Olhei pra trás e senti de voltar e tirar uma foto ou gravar um vídeo com o celular a respeito daquela cena.

Por mais que pareça estranho, algumas coisas aparentemente pequenas da vida não devem ser desprezadas só porque alguém vai ficar nos olhando torto. Seria uma oportunidade ímpar registrar aquela cena. Então mesmo que alguém condenasse meu gesto, eu tinha uma motivação maior e fui com o celular na mão tirar a foto da formiga.

No livro de Provérbios de Salomão no Antigo Testamento ele menciona a formiga como um ser disposto. Todavia o peso que a formiga carregava me trouxe uma lição a mais. Por isso a ânsia de fotografar.

Retornei e procurei entre as folhas a pequenina formiga. Em devaneios tive desejo de ser uma formiga. Estar sempre disposto, suportar um peso consideravelmente maior que eu sem reclamar. Inspirador!

Contudo meu olhar examinou toda a calçada e nada de achar a formiga. Mesmo sabendo que ela era a única que estava ali na ocasião.

Foi então que que ao levantar o chinelo, dei conta que tinha esmagado a coitada no momento que voltei. Com folha e tudo.

A chuva aumentou. Tomei um banho. Molhei meu celular. Todo mundo me olhou feio. Cheguei em casa espirrando.

Moral da história: eu ainda estou vivo. Mas sou um assassino. Não seja uma formiga.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 23/12/2019
Reeditado em 26/12/2019
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