uma NOITE DE NATAL

Iam os três à frente na carrinha – Mário, Matilde e Leonel.

Havia gente a morrer por todo o Mundo: guerras em África, assaltos à mão armada na América, terrorismo na Europa e catástrofes naturais e anti-naturais na Ásia e na Oceania.Talvez no deserto só houvesse o vento e a tempestade mas de resto um rastro de sangue e lágrimas renovava-se a cada segundo.O “espectáculo do mundo aterrador” nas palavras de Saramago no seu discurso de agradecimento pelo Nobel da Literatura.

Para eles era um dever, uma urgência e talvez um ritual.

Despediam-se das famílias escandalizadas e incompreensivas e iam fazer voluntariado ao serviço de uma associação pouco falada. Fazer a ronda e tentar aliviar o espantoso sofrimento humano pelas valetas da cidade.

- Ao menos hoje não chove – Leonel, um homem de trinta anos magro e de barba aventou para quebrar o silêncio e a tensão.

- Vou ligar o rádio.Com música - disse Mário que conduzia a furgoneta.

- Parece-me bem – aprovou Matilde, uma quarentona seráfica mas estóica, talvez com uma vocação para freira desperdiçada…

A caixa estava cheia com alimentos, remédios, bebidas e até maços de cigarros.

Lisboa , o pesadelo de um vadio. Na noite de Natal.

Subiram para Campolide, atravessaram a Rodrigo da Fonseca.Pararam na esquina onde havia duas mulheres ao frio.

- Boa Noite!A trabalhar hoje?- perguntou-lhes Leonel.

As mulheres nem responderam.

Mário saiu e juntou-se ao colega.

- Talvez aceitem estes novos agasalhos e uma bebida quente.- sugeriu

- Não fazemos borlas para piedosos na Noite de Natal.- respondeu a prostituta mais velha e cuspiu para o chão.

- Calma, relaxem.Não viemos à procura de consolo.

Matilde arriscou, desceu do carro e entregou-lhes as ofertas.

Mário sorriu-lhes.

- Vamos?

Meteram-se novamente no carro e continuaram.

- Com o whatsApp não se percebe como é que elas não podem evitar este desconforto.

Iniciaram uma volta pelos bairros onde sabiam haver gente a passar mal.Os Sem-abrigo, os Toxicodependentes, os seres na mais absoluta e desesperada condição sem qualquer esperança que os salvassem nem vislumbre de redenção alguma.

Metodicamente, tentando ostentar uns aos outros não serem tocados por essas visões do inferno escondido e não mostrado nem pelas televisões nem pelos políticos, eles executaram a sua tarefa anual - prover uma gota minúscula de alívio no grande oceano do sofrimento e da desdita.

Distribuiram taças com sopa, copos de água, cálices de aguardente, café e chá a fumegar quase sem pensarem no que estavam a ver e a fazer.Monitorizados, automáticos e intimamente lívidos.

Algumas crianças famintas e geladas com o frio do Inverno para quem as dádivas souberam a prendas que os anjos lhe tivessem dado sem esperar num milagre.

- Com estas é que me vou abaixo! – reflectiu Matilde em voz alta.

Levaram horas nos percursos sinuosos e intermináveis

Mas finalmente enfrentaram a fatalidade grosseira da ciência social económica.Necessidades múltiplas e recursos limitados.

- Acho que já não há mais stock.Temos que regressar - avisou Mário

- Claro.Também há quantas horas andamos nisto?- perguntou Matilde.

- Há muitas.Se mais houvesse…

Os três calaram-se.Chegaram à base.Falaram com a responsável, uma senhora de meia idade e olhar determinado.Como que lhe prestaram contas da tarefa executada.Alguém tentou desanuviar,os outros riram sem vontade mas para responder à deixa.

- Obrigado pela companhia.Acho que não fizemos uma má equipa – despediu-se Mário e sentiu-se parvo ao dizer aquilo.

- Obrigado também. E por muito impróprio e deslocado que pareça, “Feliz Natal”- e Matilde abriu-se num sorriso calmo.

Trocou beijos com os companheiros.

Os dois homens acompanharam-na até ao carro.Acenaram adeus quando ela arrancou no escuro.

- Preciso de uma bebida forte - confessou Leonel.

- Não há bares abertos.Não há nada aberto hoje e a esta hora.A Noite de Natal é adversa ao público.As famílias fecham-se nos seus clãs de… egoísmo e farsa.

- É uma noite fantasma.Trágica.As mazelas da humanidade ficam todas à mostra.Às vezes pergunto-me porque faço isto todos os anos – observou Leonel

- Também me questiono.Mas…nunca consigo uma resposta plausível.É como bater uma pívia.

- Bem…Já são horas.Vou para casa.Tentar chamar um táxi.

- Não.Dou-lhe boleia.Onde é que mora?

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 24/12/2019
Reeditado em 05/02/2020
Código do texto: T6826298
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