Rapto dos Sentidos

RAPTO DOS SENTIDOS

Uma bela manhã, estava eu a tomar café na cozinha inacabada de minha residência no segundo andar da casa do meu sogro. Apesar de a cozinha ainda estar inacabada, já que não sou dado à alvenaria de maneira alguma, ela é muito bonita pra mim. Bonita por estar inacabada. Faz-me lembrar que somos como essa cozinha. E, sinceramente, pensando na maneira como essa cozinha faz com que eu pense em mim mesmo, às vezes nem tenho vontade de concluí-la. É como se fosse um memorial de quem sou.

Deixando à parte o lado romântico da minha cozinha, sendo que para alguns ela é apenas uma cozinha que ainda está com chão de cimento e paredes sem reboque, ao tomar café nessa bela manhã, quase fui tragado por uma espécie de fenda no tempo e no espaço. A manhã era bela apenas no sentido estético, por assim dizer. O sol brilhava do lado de fora da janela que eu observava. Os pássaros cantavam, já que pássaros ainda cantam quando você mora no interior do Estado de São Paulo. O dia estava belíssimo lá fora. Mas dentro da minha cozinha, sentaram-se ao meu lado para tomar café comigo duas personalidades incríveis: a saudade e a melancolia.

E, nesse café mais fantasioso do que qualquer outra coisa que eu tenha vivido, quase que de súbito, fui retirado daquele lugar e pousei noutro: a casa inacabada onde vivi com meus pais durante alguns meses da minha vida quando era adolescente. Pensa num lugar gostoso. Era mato pra todo lado. E não podia ser diferente: é exatamente assim que você começa a descrever uma chácara num bairro afastado da cidade de Mairinque.

E, naquela espécie de rapto dos sentidos, comecei a me lembrar de uma bela manhã comum na chácara que vivíamos. Mamãe havia preparado rosquinhas com farinha de trigo e uma bela garrafa de café. Talvez meu vício tenha vindo daquela época. E não é que meu vício ficou mais familiar agora que pensei nele dessa forma? Papai estava sentado num sofá batido que tínhamos na sala. Minha irmã estava já no quintal: aquela menina amava brincar na terra, na grama, nas escadas (eram ao todo 53 até o fim do terreno íngreme onde morávamos) e não demorava muito até que ouvíssemos as suas risadas.

- Nelsinho, você não vai levantar? Sua irmã já está lá fora brincando faz tempo e o seu pai já falou pra eu te acordar umas 15 vezes. Você vai ficar na cama até que horas menino?

- Eu sei mãe. É que é tão gostoso dormir aqui. Não tem barulho de carro nem de ônibus.

Meu pai riu. Para ele era motivo de grande triunfo ter tirado a família da movimentada capital paulista para um bairro tão pacato quanto era o Dona Catarina. Os dias ali eram quase eternos. Demorava muito desde o nascer do sol até o momento em que ele ia descansar. Os dias eram mágicos. Brincávamos de tudo, minha irmã e eu. Era um dia mais feliz que o outro. É bem verdade que não reparávamos que nossa alimentação não era das melhores. Tutu de feijão no café da manhã não é bem o que uma nutricionista chamaria de nutritivo nos dias atuais. Mas, e daí? Tutu de feijão com alegria. Quem pode dizer que isso não sustenta? É melhor comer feijão com farinha numa casa onde habita a alegria do que comer caviar numa casa onde só existe intrigas.

Depois das rosquinhas, e de uma boa dose de café preto, certamente eu me juntaria a minha irmã. Brincaríamos a tarde toda, descompromissados, indiferentes com as dificuldades de uma vida cheia de burocracias e coisas de adultos. A vida era uma festa. Porém, se a melancolia me levara até lá para me mostrar tudo isso e, de certa forma, fazer-me rir diante daquelas paredes inacabadas da minha cozinha, a saudade tinha outro lugar para me levar.

Na verdade, eram dois lugares que se fundiam em apenas um. O último dia de vida da minha mãe e o último dia de vida do meu pai. Eu sempre visito esses dois lugares, mas naquele dia era diferente. A saudade queria me ensinar algo. Perplexo para entender como poderia fazer sentido reviver um café da manhã no campo e em seguida, visitar dois funerais, fiquei pensativo e apenas contemplei o momento.

Foi quando um pássaro veio voando e bateu forte na janela da minha cozinha, que estava fechada, como de praxe. Ele morreu. Eu sabia que ele tinha morrido. A pancada fora muito forte, e como estou no segundo andar, a queda dele ao solo foi de, no mínimo, 5 metros. Naquele momento entendi de súbito o que queria me dizer a saudade: Cantou, voou, alegrou a todos, partiu. E em tudo isso foi feliz. Terminara naquele instante o rapto dos meus sentidos e voltei um pouco mais maduro para a minha cozinha inacabada.

Nelson Figueira

filósofo amador

https://umfilosofoamador.blogspot.com/