Era uma vez... 


     - Era uma vez... 
     - De novo, tia! 
     - Mas eu ainda não contei a história... 
     - É, mas eu já sei o final, conta outra... 
     Era assim todo tempo. A tia, desde sempre bondosa, amiga, ao visitá-la, fazia questão de lhe contar histórias na hora de dormir. Lucinda punha-se no papel da bruxa boa que salva o cãozinho Júnior das garras da malévola bruxa Leocádia, depois que esta o convida para a festa em seu castelo e transforma-o num apetitoso cachorro-quente com pedigree. 
     A aventura servia ao propósito de aplacar sua solidão. Existia para o trabalho. Dedicava-se a ele como ponte de salvação, esquecendo-se de viver. Não namorava ou possuía um amigo com quem pudesse dividir-se, tampouco era dada a festas ou boates ou bares cheios, lugares onde qualquer jovem de sua idade procura um parceiro, mesmo que transitório – por que os jovens de hoje pensam que os de ontem não ‘ficavam’? Talvez a maior diferença entre nós seja o tempo, o nosso conhecia o amanhã – ou instantâneo. 
     Lucinda era tão obcecada pelo trabalho que levava serviço para realizar em casa, ocupando seu final de semana com deveres que poderia concluir na segunda-feira. Chegou a comprar um computador – antes dizia que jamais teria um, que isso era coisa de gente alienada, esses dogmas de quem não reconhece virtudes na modernidade. 
     “... não posso atrasar o serviço!”. Mudara muito. 
     Apaixonou-se uma única vez. Acreditou estar namorando, mas o casal se encontrava tão pouco que o sabor de um beijo molhado, demorado ou anunciador de calores sensuais caía no vazio do esquecimento. Ainda assim durou quase dois anos essa relação idealizada. 
     Aliás, Lucinda era romântica por excelência. Lia Vinícius de Moraes amiúde, mas não cria na imortalidade do que não dura. Ouvia músicas melosas e ficava a sonhar com o príncipe que só aparecia em histórias de ninar sobrinha. Escrevia poesias cujos cenários remetiam aos bares e bibocas diabólicos de um atormentado Álvares de Azevedo. É ótima poetisa: 
                                 Tempo 
                             Tempo amigo 
                             Que de tempos para cá 
                             Parece-me correr 
                             Atrás das milícias feministas 
                             Ou do chauvinismo dos meus poemas: 
                             Que essa novena se acabe depressa! 

     As visitas que fazia à sobrinha eram o momento mais lúdico que se permitia vivenciar. Adorava as travessuras da pimpolha, deixando-a, sem censura, à vontade para fazer o que bem entendesse. Tratava-a como filha. Mais que isso, já que alguns pais confundem, em nome da educação, liberdade vigiada com cárcere privado. 
     Decidi-me: era tiona, tiazona, a TIA. 
     O que os caros leitores devem estar-se perguntando é sobre os limites: não havia limites impostos à pequena? Devolvo-lhes a pergunta: o diálogo, o carinho, a dedicação, o respeito, esses não são limitadores naturais, capazes de assegurar, sem maiores embates, o lugar de cada um dentro do sistema? Pois esses eram o limite, ou a falta, se insistem. 
     Embora sua dedicação à sobrinha fosse prazerosa, Lucinda pretendia mais: amaria seu homem com calor e poesia; seria feliz com seu príncipe, que a transformaria em rainha terna e justa; amamentaria seus próprios principezinhos com tal desvelo que jamais sofreriam reveses; reinventaria o amor com tamanha magnitude que o tornaria irremediavelmente concreto. 
     E assim, dia após dia, dormia feliz o seu sono de luz; embora amanhecesse só, pranteando a triste realidade de sua treva ultra-romântica.