O MEDO DE ESTAR COM A RAZÃO

Naquela manhã Aparecido saiu alguns minutos antes do que de costume, sabia certamente o que isso significava, não apertaria o passo, talvez pudesse perceber o caminho que fazia todos os dias, tão olhado e pouco visto, a rotina tem esse poder desumanizador de deixar tudo igual. Porém não foi assim, afinal ver o quê? Era só a mesma rua, carros que passam pra cá e pra lá, pessoas que circulam com destinos desconhecidos... No entanto teve a sutil impressão de ter esquecido algo... Podia se tratar apenas de uma impressão mesmo, pensou.

Enfim o que importava, o ponto de ônibus era um sítio onde a segurança e a previsibilidade reinavam absolutas, a única exigência era a pontualidade, a tão desejada pontualidade. E assim aconteceu. A chegada, as pessoas, os mesmos assuntos.

Com a parada do coletivo, as pessoas se tumultuaram. Toda gentileza ali dava lugar a uma quase selvageria, como se subir no ônibus primeiro fosse um direito assegurado a cada um, seja pelas varizes, pelo atraso ou pela força bruta. Aparecido ombreava, jogo de corpo pra cá, uma distraída cotovelada pra lá, mas nada que o fizesse conquistar um cobiçado assento.

Ele repara um jovem barbudo lendo um livro, e se questiona como há um número crescente de jovens com barbas grandes, talvez fosse moda, via alguns jogadores adotarem esse estilo. Salta de sua mente a ideia de também deixar a barba crescer, como nunca o fizera na juventude. O pessoal do escritório certamente reprovaria a esquisitice, acreditariam se tratar de desleixo. Talvez estivessem certos, ele sabia o que um rosto prudentemente barbeado significava, suas camisas engomadas, seus óculos, os sapatos, sóbrios, mas engraxados; tudo isso lhe emprestava um ar de seriedade que conseguiu consolidar ao longo de anos, estragar por um pequeno prazer?

Nos bancos da direita, próximos à porta de saída, dois homens conversavam sobre futebol. Aparecido adentrava naquela conversa, mesmo sem uma participação ativa ou visível. Num lance, foi transportado aos tempos de escola. Recordou quando ainda sonhava poder se tornar um jogador profissional, nem precisava ser um centroavante, talvez nem mesmo titular, bastava pertencer a um time. Poder participar de uma conquista, poder gritar com uma vitória. Era o sonho de tantos garotos, ele logo viu que não seria viável. A oportunidade de emprego no escritório, o salário fixo, baixo, mas fixo, a estabilidade de uma casa financiada, de uma família. Agora se via dentro de um ônibus lotado, incapaz de dar um drible, de chutar uma bola sem culpa, incapaz de falar alto, com medo de ser mal interpretado, medo até de estar com a razão, é isso, ele balançou a cabeça ao compor essa pérola “medo até de estar com a razão”.

A sensação de ter esquecido algo importante já começava a tomar uma proporção maior. Olhou novamente para suas roupas. Tudo devidamente como todo dia. A caneta no bolso da camisa, a bolsa nas mãos é rapidamente conferida em uma parada para a descida de passageiros.

Chega o seu ponto, a vida é meio que uma viagem de ônibus, às vezes acaba antes do previsto, às vezes parece que dura mais que o necessário. Ainda faltavam alguns minutos para bater seu ponto no escritório, isso também já estava previsto, como um script de novela. Era o tempo para ir a banca comprar o jornal

Veio-lhe a cabeça a estranha ideia de sentar no banco daquela praça, talvez poder ler o caderno de Esportes. Tantos anos trabalhando em frente aquela singela pracinha e nunca havia pensado nisso. Tentou afastar aquele desejo fora de hora, mas não conseguiu. Era como se algo o atraísse, não necessariamente à praça, mas o atraísse a quebrar a rotina. Era uma sensação que ainda não experimentara e que, sem forças para vencê-la, acabou cedendo. Parece que as coisas ficavam obscuras em sua cabeça, como se, de repente, aquele jornal, a mala, suas roupas de burocrata, seu emprego no escritório, seus colegas que não o conheciam de verdade, sua vida comedida, tudo fosse uma grande e cansativa mentira.

Agora entendia aquela aflição de estar esquecendo algo. Esquecera de fato sua personalidade, seus sonhos, esquecera que não era feliz, que se preocupava mais em agradar aos outros do que a si, que abrira mão de tudo que gostava em nome da moral e dos bons costumes. Tinha realmente esquecido o que era essencial, sua natureza, sua identidade. Como se sua alma fosse um lobo aprisionado em um corpo de um animalzinho de estimação em apartamento. Parecia tão claro que se surpreendeu em como, por tantos anos, aceitou tanta coisa a contragosto, calou quando todo seu ser ansiava pelo grito. De novo veio aquele pensamento, o medo de estar com a razão. Era a mais pura verdade, preferia estar errado a ter que lutar pelo seu direito.

Tudo isso se passou num flash, a consciência súbita o deixou atordoado, sua vista escureceu. Via as pessoas passarem ao seu lado, mas como se todos fossem apenas vultos. Sua cabeça começou a pesar absurdamente e uma tontura súbita tomou conta de si. Soltou a mala que caiu aberta ao lado do banco, alguns papéis voaram. Quando percebeu também estava no chão, caído como um pacote disforme. Ainda podia ver os papéis, faziam um ziguezague elegante com o vento, mesmo com aquela vertigem notou que a caneta havia estourado no bolso da camisa, com algum custo passou a mão para avaliar o estrago, seus dedos ficaram manchados. Já via ao seu redor alguns curiosos, alguém que gritou:

- Liga pro SAMU!

Teve um pressentimento singular, sentia-se secretamente realizado em estar fazendo algo diferente, mesmo que jogado em uma praça, “tá lá um corpo estendido no chão”. Sentia-se mais ele, mais íntegro. Ouviu um barulho de ambulância, sabia que era a razão daquela agitação e isso o excitou. Já imobilizado na maca não via mais quase nada, era um grande jogador da seleção, agredido deslealmente pelos adversários, contundido que saía de campo aplaudido pela torcida, era a glória, a realização de todos seus sonhos, substituído por um reserva qualquer. Alguns funcionários do escritório reconheceram Aparecido já sendo levado para a ambulância. Mas em sua cabeça era a torcida que, apaixonadamente, gritava em coro:

- Aparecido! Aparecido! Aparecido!