A PACIENTE EXTRAVIADA

Sempre imaginei o inferno como uma sala de espera, quente e lotada, onde nunca se é chamado, os que já passaram pela experiência sabem do que estou falando e talvez perdoem o exagero da analogia, já os que apreciam um certo requinte de crueldade, imaginem essa espera acompanhada de uma dor cruciante. Infelizmente esse cenário existe às pampas e, às vezes, somos convidados a vivenciá-lo...

A sala de espera em que estou, no entanto, foge a essa situação. Há alguns ventiladores que se encarregam de amenizar o clima quente do dia, incansáveis, cumprem sua função universal de arejar o ambiente e o ruído é algo que não chega a ser desagradável. Também há assentos disponíveis, onde estamos nós, os pacientes. Na realidade, no exato momento, só resta uma cadeira desocupada, fato que me preocupa, pois sei que a possibilidade de se chegar um casal de simpáticos idosos é grande e terei que exercitar o dever cívico de oferecer meu assento. Me envergonho dessa preocupação, assim que a formulo, mas o que acontece é algo interrompe essas reflexões.

- Evanildo Barbosa da Silva. Grita a senhora que está no guichê que coordena a chamada dos pacientes para adentrar ao consultório. Seu Evanildo se levanta, apesar da idade avançada, aparenta certo vigor de causar inveja aos indispostos, ainda assim está acompanhado de uma mocinha que tem idade pra ser sua neta, mas que tem olhos de gente mais velha, tem até um poema do Bandeira que ele diz algo parecido, como se os olhos da moça tivessem nascido muitos anos antes e esperado o nascimento do restante do corpo para se juntar a ele. Acho que ele se referia a um tipo desses.

Ficamos todos especulando quem seria o próximo a ser chamado, numa espécie de jogo sem graça, já que não há senhas, tampouco a lógica comum da ordem chegada. Desconhecendo os critérios válidos todos estamos na expectativa de ouvirmos nosso nome pela senhora de óculos do guichê. Ela, no entanto, não se prende a observar-nos. As pessoas perdem a percepção do outro e, muitas vezes, tornam-se máquinas cumpridoras de ordem. Fantasio a mãe da senhora de óculos dizendo pra ela, quando essa começou a trabalhar no hospital: “Não se envolva com os pacientes para evitar sofrimento”. Compreendo e me identifico com ela nesse momento, não deve ser fácil passar a existência atrás de um guichê, a escutar reclamações sobre a demora nos atendimentos...

Ela, mais uma vez imposta a voz e, grave, convoca: - Neide Carvalho dos Santos. Os olhares se entrecruzam à procura de Neide. Ninguém se manifesta, talvez Neide esteja distraída e não tenha escutado. Talvez converse sobre o capítulo de ontem da novela com alguma outra senhora e não reparou que a chamavam. A intimação é repetida: -Neide Carvalho dos Santos, agora há na voz da senhora do guichê um misto de ansiedade e indignação, como se a continuação do Universo dependesse da aparição imediata de Neide. Contudo não há pistas aparentes de Neide, embora haja nas proximidades três ou quatro senhoras que bem poderiam se chamar Neide. Não sei de onde tiramos essas suposições: Fulano tem cara de Lauro, beltrana tem cara de Joana, enfim, mas elas existem e persisto com a infundada suposição que aquelas mulheres bem poderiam ser a procurada Neide, ao menos terminaria a angústia da atendente e as chamadas poderiam continuar no seu ritmo habitual.

Como que as pessoas vão ao hospital, preenchem uma ficha para atendimento e somem assim, de repente, fico pensando... A atendente chama outro nome, não consigo ouvir muito bem, sei, contudo, que não é o meu, embora seja nome de homem. Fico pasmado com o caso do sumiço de Neide. Qual seria o paradeiro daquela mulher? Neide se curou, por milagre, e não viu mais a necessidade da consulta? Neide desistiu por conta da demora do atendimento? Não se adaptara, essa mulher, à espera cansativa nos hospitais públicos? As conversas na sala de espera são retomadas, isso, de certa forma, irrita-me. Tamanha insensibilidade ninguém questionar o desaparecimento de Neide, acaso é coisa normal um sumiço desses...

Penso na possibilidade de sequestro, será que dentro de um hospital também fizessem essas atrocidades? Mas Neide certamente seria uma pessoa simples, sem recursos financeiros para incitar tal crime. Teria sido arrebatada, como num filme que assisti há uns dias em que os passageiros eram arrebatados dentro do avião e os que ficavam tentavam entender o que havia acontecido. Se de fato foi isso, estamos todos lascados. Teria sido abduzida? Não se viu, é certo, luzes fortes ou nave alguma. Não se sabe o que, de fato, aconteceu à extraviada paciente, mas a vida de todos, clinicamente, continuará morna e debilitada.