A Velha

O frio nas articulações era a coisa mais estúpida com a qual ela tinha que lidar. Haviam outras coisas odiosas também, claro. O cheiro que ela não conseguia se livrar independente do número de banhos que tomasse, as rugas que caiam cada vez mais e se formavam de um dia para o outro, os outros velhos que não calavam a boca ou choravam a noite toda, a odiosa cuidadora que ela não conseguira espantar. Era um pouco admirável, ela admite. Com tantos ataques de fúria e objetos arremessados, aquela pentelha não tinha feito sequer uma reclamação dela para a administração daquele buraco em que os filhos a tinham enfiado.

— Você trouxe? — Perguntou. A menina a olhou com desdém e tirou o pacote de cigarros da bolsa que carregava.

Talvez fosse por isso. A garota era tão má quanto ela, não se assustava com a sua falta de educação ou veneno que escorria cada dia mais.

— Você quer acender sozinha ou eu faço? — A cuidadora estendeu um cigarro. O braço da velha tremeu quando tentou alcançar. — Eu faço. Você está mais magra e fraca esses dias, parou de aceitar a comida de novo?

— Grande coisa comer para vomitar dois minutos depois. É um asco, aquela merda esmagada — O cigarro tapou as outras palavras e foi aceso. A garota aproveitou para arrumar a touca vermelha que cobria os poucos fios grisalhos que ainda não haviam caído.

— Vou tentar trazer alguma coisa mastigável na próxima semana. Não garanto, eles andam desconfiando de mim.

— Se nós tivermos sorte, semana que vem não chega pra mim.

— Você acha que está mais próxima, Donna?

— Eu espero que sim. Quem vai sofrer é você.

— Você é tão cheia de si. Acha que vou sentir sua falta? Por Deus, você é insuportável.

— Eu sei. Mas os outros são piores. Você vai ter que dar papinha e limpar a boca depois. Fora que os homens não gostam de tomar banho, aqueles porcos imundos. Vai saber quem vão te designar quando eu for.

A cuidadora ficou em silêncio. Donna podia ver o divertimento e o horror passando pelos olhos dela enquanto absorvia as palavras escutadas. Ela não mentiu, nem estava sendo malvada, só constatou a verdade. Qualquer outro velho daquele asilo era pior que ela.

A velha continuou tragando o cigarro, dividindo o final com a garota que agora olhava a rua deserta em que estavam. Elas sempre davam esses passeios longos para que ninguém visse Donna fumando. Uma velha no fim da vida, internada num asilo caro e seguro, não deveria estar se envenenando ainda mais.

— Por que você continua fumando? Eu te escutei tossir feio um dia desses.

— Por um acaso você já abriu um dicionário? Sabe o significado de 'vício'?

— É mentira. Você só pode fumar uma vez na semana, quando eu venho. Não tem mais capacidade de sustentar o vício — A velha a olhou com a boca aberta, jogando o cigarro no chão. — Então, o que é?

— Me faz sentir jovem de novo.

E era verdade. Donna lembra exatamente quando e como começou a fumar. Num passado distante, quando ela tinha uma pele firme e um cabelo longo e negro, os comerciais de cigarros se espalharam como epidemia nos canais abertos. Era incrível ser fumante, te faziam popular. Além disso existiam as mulheres elegantes e sensuais que fumavam, como a Audrey Hepburn em 'Boneca de Luxo'. Ela queria ser como a Audrey, ser desejada e popular. Ser vista como mulher.

Apesar de pequena, Donna sempre caminhava com o queixo erguido e uma falsa confiança que não era atrativa para as garotas se aproximarem. Mas fascinava os homens de algum jeito, só os homens mais velhos. Com dezesseis anos, ela já tinha mais amantes que as amigas de sua mãe tiveram durante toda a vida. Professores do colégio, amigos do seu pai, amigos universitários do seu irmão. Ela se gabava de cada uma dessas conquistas para si mesma, não tinha amigas para contar. As meninas não a suportavam, diziam que se comportava como um moleque maldoso. Isso também era verdade, mas sabia se comportar como uma mulher feroz quando queria.

A dor vinha do fato de que todos esses homens mais velhos não a assumiam. Não importava a idade, nem a proximidade com seus parentes, tinha alguma coisa de errada com ela. Talvez ela fosse masculina, como as meninas diziam, ou talvez fácil demais. Eles nunca seguravam sua mão, nunca a levavam para jantar, nunca a pediram em namoro. Então, ela precisava parecer mais séria e mais velha.

Quando colocou um cigarro na boca pela primeira vez, sentiu uma onda de seriedade e sensualidade produzida pelo cérebro imaturo. Dali em diante, não parou mais. Construiu uma auto-afirmação em volta daquela coisa cheia de veneno, e funcionou pra ela a vida toda. Se casou, foi próspera e conhecida, teve filhos. E agora estava naquela ridícula cadeira de rodas, acompanhada daquela garota sem propósitos, fedendo a cigarro de novo. Mas o gosto da nicotina resgata o pouco daqueles dias de glória.

— Já faz muito tempo que você é velha. O nosso tempo está acabando. Talvez semana que vem?

— É, talvez semana que vem.

As duas voltaram ao asilo, discutindo se trocavam ou não a marca do cigarro, se tentavam os novos com cápsulas de sabor.

Não perceberam, mas a visita que a velha Donna tanto esperava as seguia a menos de dois passos de distância.

Não existiu o encontro na outra semana.

O pacote de cigarros de menta e laranja nunca foi aberto.

Alicia Cintra
Enviado por Alicia Cintra em 10/04/2020
Código do texto: T6912678
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