O louco

O louco

Alexandre Santos *

Logo no início da campanha sistemática contra a presidente Anita Rastik, o professor Luciano Botelho foi diagnosticado como 'louco' por leitores, amigos, colegas e vizinhos. Para aqueles 'analistas', só um louco poderia dizer tantos disparates. E, assim, com a triste reputação dada pelos adversários, a voz de Luciano em favor da presidente e contra o golpe em andamento perdeu consistência, deixando de sensibilizar até mesmo o seu antigo público.

Vale dizer que, até aquele diagnóstico arrasador, quando Luciano dava sinais de preocupação, muita gente se preocupava também, especialmente aquelas [pessoas] que tinham muito (ou pensavam ter muito) a perder. Elas se preocupavam, não porque as preocupações de Luciano nelas despertassem alguma obrigação ou desejo de corrigir coisas erradas. Não, não era isso. As pessoas se preocupavam porque o professor Luciano costumava contaminar outros com as suas ideias, arrebatando jovens formadores de opinião para erguer um vagalhão capaz de roubar o sossego dos poderosos (uma tranquilidade precária e instável por ele [por Luciano] chamada de 'sossego dos canalhas'). Aquilo tudo acontecia porque, embasado em sólida formação acadêmica, cultura ampla, grande capacidade de observação e de formulação e mirando coisas importantes (e, quase sempre, óbvias, mas só percebidas depois de apontadas por outrem), Luciano Botelho cobrava respostas de forma incisiva e destemida, fustigando e afrontando personalidades e autoridades com fundamentos lógicos e argumentações inteligentes, quase incontestáveis.

O que dizer, por exemplo, quando Luciano afirmava que, de todos os ladrões, talvez o mais perigoso fosse o sistema bancário, que, se aproveitando da taxa Selic de 6,5% ao ano, cobrava 300% ao ano pelo uso do cartão de crédito e 280% ao ano pelo uso do cheque especial; [quando Luciano afirmava] que, ao invés do MST, que só invade imóveis desocupados e improdutivos, as pessoas deveriam ter medo dos bancos, que, só nos últimos dois anos, tinham atacado inadimplentes e tomado mais de trezentas mil casas e automóveis; [quando Luciano afirmava] que, dos criminosos internacionais, talvez o mais cruel tenha sido o presidente norte-americano Harry Truman, que, apenas para testar a eficácia da bomba atômica, ordenara os ataques nucleares à Hiroshima e Nagasaki, assassinando friamente mais de cem pessoas; [quando Luciano afirmava] que, ao contrário daquilo que dizia a Casa Branca, não era a defesa da democracia ou razões humanitárias que levavam os Estados Unidos a intervir em países estrangeiros e, sim a rapina, especialmente, do petróleo, ou razões geopolíticas; [quando Luciano afirmava] que, lastreado por títulos emitidos com base em eterno déficit orçamentário, fiscal e comercial, o dólar é uma moeda sem fundo; [quando Luciano afirmava] que, embora use o déficit para financiar a sua ação, incluindo guerras, os Estados Unidos proíbem os outros países de seguirem o seu exemplo, exigindo-lhes cuidar rigorosamente do equilíbrio orçamentário e fiscal; [quando Luciano afirmava] que, embora condenem o planejamento econômico recomendado pelos socialistas, os grandes capitalistas o radicalizam [radicalizam o planejamento] no interior das suas empresas (ou vocês acham que a Boing inicia a fabricação de qualquer avião antes de saber exatamente quantos parafusos vão usar?, perguntava ele para embaraçar interlocutores); [quando Luciano afirmava] que, embora condenem a presença do Estado na economia, todas as empresas capitalistas tinham crescido à sombra protetora dele [do Estado], fosse pelas encomendas, fosse pelo crédito ou outras facilidades; [quando Luciano afirmava] que, embora nunca tivessem dito um pio contra incentivos fiscais concedidos pelo governo à seguimentos econômicos poderosos ou contra a construção de infraestrutura de estímulo à atividades empresariais, os ricos não aceitam qualquer subsídio dados pelo Estado aos pobres, acusando a prática de populista.

Havia um sentimento geral de que, para evitar problemas, a melhor forma de lidar com o professor Luciano Botelho era mantê-lo longe ou ocupado com minudências, desviando a sua atenção das coisas verdadeiramente importantes. Na realidade, o melhor seria se o professor Luciano não existisse, mas, como não podiam pura e simplesmente mandar desaparecer com ele, os maiorais conviviam com os seus questionamentos, esgrimindo meias verdades e, mesmo, mentiras para tentar escapar das inconveniências.

Acontece que, direta ou indiretamente, ameaçando coisas valiosas, para desespero dos maiorais, havia outros Luciano's mundo afora com potencial explosivo que, se não controlado de forma conveniente, poderia causar grandes prejuízos. Era preciso fazer alguma coisa. Depois de muito penar, os maiorais dos maiorais mandaram estudar formas de conviver com os Luciano's da vida.

Belo dia, quando a paciência de todos já estava próxima do limite, chegou a salvação: não precisariam mais ficar na defensiva, encurralados por Luciano Botelho num canto do ringue, para serem espancados impiedosamente. A salvação veio num e-mail, que trouxe a 'A Interlocução do Líder Liberal' - uma espécie de guia sobre como lidar com os inconvenientes e com as inconveniências. Embora útil e necessário, o manual era simples. Partindo do pressuposto de que, na impossibilidade de responder ou desmentir as acusações, era preciso desmoralizar o acusador e, desta forma, desacreditar tudo aquilo que viesse dele, o manual recomendava deixar os assuntos inconvenientes de lado, reservando-lhes o desdém merecido pelas irrelevâncias (o texto sugeria o silêncio ou um mero 'kkk' como respostas), e concentrar atenção nos 'chatos', que deveriam ser desqualificados com toda a sorte de acusações e, sobretudo, [deveriam ser] associados às psicoses e aos desequilíbrios emocionais.

E, assim, devidamente orientados por um manual cientificamente desenvolvido para orientar conversas sobre 'assuntos inconvenientes', as pessoas puderam fugir dos constrangimentos a que já estavam se habituando, recorrendo aos kkk's para responder coisas para as quais não tinham resposta convincente e atribuindo pechas pejorativas a todos que lhes eram incômodos (segundo os autores do manual, por serem dirigidas à pessoas, as pechas atraiam mais a atenção do que os assuntos, criando uma espécie de barreira que os isolavam [os assuntos] , e, se repetidas muitas vezes, [as pechas] terminam por sufocar qualquer coisa dita pelos pechados). Depois disso, a exemplo daquilo que ocorreu com muitos outros, inclusive deputados, senadores e líderes humanistas importantes, ao invés de respostas inconsistentes, Luciano Botelho passou a ser respondido com kkk's e tratado como 'maluco'. Todos que faziam oposição ao golpe em marcha - os senadores Roberto Requião e Gleise Hoffman, o jornalista Paulo Henrique Amorim, o professor Luciano Botelho foram alguns destes - passaram a ser referidos como 'malucos' e, por consequência, as coisas ditas por eles passaram a ser 'maluquices'.

Aquela técnica contaminou, inicialmente, os mais enxeridos e, depois, tomou a classe média como um todo, que, nos termos da onda dominante, manteve a condição de serviçal dos grandes maiorais e, ainda, a função de correia de transmissão dos seus interesses [interesses dos maiorais]. Aliás, de bom grado, inclusive como forma de escapar de constrangimentos e negar espaço aos contestadores e revolucionários, os kkk's e as acusações de 'maluco' foram usadas à larga por tantos quantos queriam, pelo menos nisso, fazer parte da onda dominante - e que, sem saber, de alguma maneira, assinavam uma espécie de atestado de ignorância e de cumplicidade, muitas vezes contra seus próprios interesses.

- As medidas restritivas da renda e do crédito vão ter reflexos imediatos no mercado, reduzindo o nível de negócios. Isto interessa a vocês? - Luciano Botelho alertava comerciantes adeptos da campanha contra Anita Rastik, que, se dizendo contra o populismo (o professor Luciano dizia que, na realidade, de tão ignorantes, a maioria das pessoas que usavam a palavra 'populismo' não sabia o significado do termo), esbravejavam contra o programa Bolsa-família.

- kkk - riam uns.

- Luciano é doido. kkk - desconversavam outros.

- O aumento das penas não tem como reduzir a criminalidade, cuja origem é a política econômica recessiva - Luciano dizia àqueles que, cada vez com maior veemência, atribuíam a violência das ruas e criminalidade ao pequeno efetivo policial e à 'brandura das leis' ("precisamos de mais polícia e leis mais duras", diziam eles).

- kkk - riam uns.

- Luciano é doido. kkk - desconversavam outros.

- A classe média vive de ilusão, pois, embora viva dentro do cheque especial e pendurada no cartão de crédito, finge que é rica. Coitada! Se passar dois meses sem receber salário ou se suas lojas passarem um mês com as portas fechadas, não vão conseguir sequer pagar o condomínio dos prédios de luxo em que moram - Luciano dizia aos vizinhos e colegas de trabalho que, por possuírem nível cultural semelhante aos dos ricos, com os quais estudaram no ensino médio e na faculdade, mesmo tendo pouco dinheiro, se achavam 'ricos'.

- kkk - riam uns.

- Luciano é doido. kkk - desconversavam outros.

- Uma campanha liderada por políticos desonestos como estes, não pode ser séria - o professor Luciano dizia aos amigos vestidos de verde-amerelo, que, batendo panelas ao lado de grandes e notórios corruptos, exigiam o Impeachment de Anita Rastik evocando o combate à corrupção.

- kkk - riam uns.

- Luciano é doido. kkk - desconversavam outros.

- A previdência pública não pode ser tratada como um plano de previdência privada. A reforma da previdência que estão falando por aí só tem o objetivo de criar uma imensa reserva de mercado para os bancos - dizia o professor Botelho, lutando contra a reforma que, reproduzindo a conversa de qualquer gerente de banco, propunha a adoção do sistema de capitalização dos valores recolhidos mensalmente pelas pessoas.

- kkk - riam uns.

- Luciano é doido. kkk - desconversavam outros.

- A verdadeira razão do movimento que quer derrubar Anita Rastik no Brasil e, também, Nícolas Maduro na Venezuela é o petróleo - antes de ser interrompido, Luciano tentava, sem sucesso, informar que a Venezuela possuía a maior reserva de petróleo de planeta, maior, inclusive, do que a Arábia Saudita, e que o Brasil tinha a terceira maior reserva.

- kkk - riam uns.

- Luciano é doido. kkk - desconversavam outros.

Sem saber que um manual orientava o comportamento dos seus 'adversários políticos' - inclusive como forma de proteger os alienados e desestimular o debate sério de questões importantes -, Luciano Botelho se perguntava como as pessoas não percebiam certas coisas, inclusive algumas que as prejudicavam (ou tinham potencial para prejudicá-las) intensamente. Aquela situação o preocupava e irritava profundamente, não apenas pelo isolamento a que era levado, mas, principalmente, porque indicava dificuldade de resistência ao rolo compressor que vinha esmagando o sorriso, a alegria e o bem estar das pessoas.

Talvez, pensou ele, ao invés de revolucionário consciente, fosse melhor ser alienado como a maioria dos seus amigos.

* Alexandre Santos é ex-presidente da UBE e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural