Última da fila

Ju, moça católica devota, tinha no peito um incômodo. Isso estava consumindo seus dias e fazendo ela cada vez mais interceder por esta causa. Para ela, guardar rancor e não perdoar não condiziam com a fé que ela professava. Entretanto, esses maus sentimentos não eram mantidos no coração diligente dela. Uma pessoa que possuía um coração virtuoso, amável e em constante atitude de oração jamais poderia manter dentro de si mesma tais monstros. Na mais sutil prece da garota, eles eram espantados como as imponentes trevas da noite se desfazem tão logo os primeiros raios de sol aparecem.

As orações de Ju eram voltadas para sua avó. A senhora se queixava de situações vividas, algumas ainda na época de adolescente, que tinham magoado ela profundamente. A cada relato, ela revivia tudo. Parecia que seu coração era constantemente apunhalado e sua alma se distanciava cada vez mais da leveza que faz voar até o céu e lá querer ficar eternamente. Conseguia-se perceber no semblante da anciã o cansaço vindo não do físico, mas do espírito. Ela se assemelhava a um álbum velho de fotos antigas e amareladas que, com o passar do tempo, findou por não suportar o excesso de passado e acabou por depauperar-se.

Como deveria ser angustiante para uma jovem tão devota ver uma parente tão estimada carregando sobre as costas pedras de incalculáveis toneladas! Como paliativo para tentar ajudar a carregar essas pedras, por maiores que fossem, Ju escutava tudo no silêncio. Sempre com uma terna paciência digna de um Nobel da Paz. A jovem moça ouvia tudo com atenção e depois despejava tudo aos pés do seu Deus em orações e súplicas.

Mas, afinal, qual era o medo dessa moça? Não era ela que estava acorrentada aos maus afetos. A questão era que, para ela, um bom católico não pensa apenas em si. Ele sabe que a salvação eterna é individual, mas sabe, de igual modo, que pode ajudar seus irmãos a mudarem o percurso de suas pobres vidas e também garantirem seus lugarzinhos na morada eterna. Da maneira que a mulher de coração duro estava, era duvidosa sua ida para lá. Isso trazia à jovem a lembrança da letra de uma tradicional canção das missas que ia com sua avó quando ainda criança que dizia: “Senhor, quem entrará no santuário pra Te louvar? Quem tem as mãos limpas e o coração puro. Quem não é vaidoso e sabe amar…”.

Parece que o ditado “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” funciona bem quando posto em prática. A idosa, certo dia, confessou a neta um sonho que tivera. Ela tinha morrido e ido ao céu. Lá, tivera sido recebida por Nossa Senhora Aparecida. A Santa mostrou uma assembleia com muitas pessoas sentadas e, bem no fim, poucas cadeiras restantes vazias para a acomodação dos recém chegados. A senhora, então, indagou à Nossa Senhora o porquê da cadeira dela ser a última, quase não mais tendo espaço entre os eleitos da assembleia celeste. A Santa, então, cantou como resposta: “Senhor, quem entrará no santuário pra Te louvar? Quem tem as mãos limpas e o coração puro. Quem não é vaidoso e sabe amar…”. A velhinha lembrou da canção das missas que ia. As palavras entraram como flechas de fogo no seu coração, cauterizando as feridas abertas do passado. Ali ela foi curada dos rancores e da falta de perdão.

Ju havia tocado apenas em um grão de areia da imensa praia de pessoas presas às correntes do rancor, ira, ódio e falta de perdão. Ela devolveu ao céu uma andorinha que havia quebrado as asas e desaprendido a voar.

Ricardo R Marques
Enviado por Ricardo R Marques em 24/04/2020
Reeditado em 24/04/2020
Código do texto: T6927441
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