Retrato BR

Porque será que quem mais ajuda também é quem mais precisa?

A casa não media mais que cinco metros quadrados feita em um único cômodo. As taboas, madeirites e portas de armário faziam as quatro paredes do pequeno casebre de dona Maria.

Dentro, um sofá posto ao fundo que lhe servia de cama e em frente uma mesinha de centro improvisada com dois tijolos e um Madeirite muito mal cortado. A casa não tinha banheiro, apenas um vão no canto esquerdo da casa que dava direto ao córrego. A casinha de equilibrava no barranco e quando mais de uma pessoa andava por ela parecia que tudo iria ao chão.

Depois de uma chuva preocupante na madrugada Maria fazia a faxina pela manhã bem cedo. O sol já penetrava por entre as frestas das madeiras mal pregadas e amarradas com arames.

A poeira subia enquanto ela batia no sofá velho e furado e a luz transpassava pelas minúsculas moléculas de pó que brilhavam em milhões de pontinhos.

Com cinqüenta anos Maria aparentava ser ao menos vinte anos mais velha, desempregada vivia com uma mixaria que recebia de um programa social. Com esse dinheiro comprava água e salgadinhos para vender no farol. Ela sempre estava no mesmo semáforo com seu chapéu azul marinho e uma cestinha nos braços.

Não se passava um dia se quer sem que dobrasse seu joelho em oração, agradecendo por sua saúde. Às vezes o cansaço era demais... As lágrimas corriam por seu rosto negro em uma suplica silenciosa. Mas nada a impedia de dia após dia estar de bem com vida, lutando, vencendo e tornando aquela situação difícil em uma história épica e poética.

Dona Maria é um exemplo de fé e representa boa parte do nosso querido povo brasileiro.

Apenas um dia normal como tantos outros. O sol estava à pino e Maria desfilava pela fileira de carros parados no semáforo. Ela passava segurando seu cesto com garrafas de água gelada sem dizer uma só palavra. Ela conseguia vender tudo quando fazia muito calor, mas era um esforço desgastante demais. Em suas inda e vindas entre os carros, notou um garotinho franzino de “olho comprido” para o seu isopor que estava em um canto na calçada. No primeiro momento sentiu-se acuado e se aproximou de sua ferramenta de trabalho para evitar qualquer contra tempo. O garotinho se aproximou e sentou-se em uma mureta ao lado de Dona Maria e falou tão baixo que quase não se pode ouvir por causado dos ruídos da avenida.

- Tia, tô com fome. – logo sua cabeça pendeu por cima de seu peito magro.

Aquelas palavras cortaram o peito de Maria no mesmo instante. Uma criança não deveria passar por algo assim, pensou ela. Que mesmo sendo pobre por toda a vida, nunca havia deixado seus filhos desamparados.

Maria abriu uma garrafa de água e um salgadinho e deu a ele. Enquanto ela trabalhava dialogava com ele e conheceu a sua delicada historia.

A historia do pequeno João parece longa demais, apesar de sua pouca idade. Então só vou contar a parte que mais me impressionou.

João era natural de algum vilarejo qualquer no nordeste brasileiro. Morava com sua mãe e seu irmão mais velho em uma casinha feita de pau a pique. Seu pai havia abandonado a família indo para são Paulo com o pretexto de conseguir um emprego e assim mandar dinheiro para eles. Coisa que nunca aconteceu. Duas ou três cartas foram enviadas com o intervalo de longos meses, apenas para atualizar o endereço novo. A pobre mãe enviava todo mês pelos correios seu apelo sincero na tentativa de comover o canalha e assim conseguir algum tipo de apoio.

As coisas pioraram muito depois que sua mãe partiu em um ataque súbito. Seu tio, bêbado e mau caráter, conseguiu convencer os garotos a ceder sua pequena casinha e alguns animais do quintal em troca de duas passagens de ônibus para são Paulo. Dizia que era muito fácil encontrar o pai, era só ir e perguntar pelo endereço.

Em menos de uma semana após a morte de sua mãe, João embarcava em um ônibus com apenas alguns trocados no bolso. Seu irmão mais velho cuidou bem do dinheiro durante a viagem. Estavam acostumados e sobreviver com pouco e não sentiram mais que um pequeno incômodo no estômago vazio durante toda a viagem.

Enfim chegaram a grande cidade. Nunca viram algo como aquilo antes. O movimento era frenético na rodoviária e estavam completamente perdidos.

Segurando cada um uma sacola plástica com poucas peças de roupa, andavam a esmo na grande rodoviária tiete sem saber para onde ir. Nem um dos dois sabia ler então encontrar a saída se mostrou um desafio amargo e serviu para imprimir a primeira sensação de impotência que tiveram por aqui.

Um dos seguranças percebeu que estavam completamente perdidos ao ver os garotos perambularem por ali por horas. E depois de uma conversa rápida informou para onde eles deveriam ir.

Depois de terem percorrido alguns metros e ter passado pela grande escada rolante que causou certo divertimento para os garotos, se encontravam na rua agora. Estavam aliviados por conseguirem sair daquela algazarra, mas essa sensação não durou muito. Por todo o caminho eles não imaginaram como iriam encontrar o infeliz de seu pai. Levados pela inocência acabaram entrando em uma enrascada sem precedentes.

Não preciso contar tudo o que aconteceu depois, eu não saberia descrever em palavras o sofrimento que os dois garotos passaram dali em diante. No fim das contas, nunca encontraram o pai. Moraram na rua por quase um ano inteiro, sobrevivendo de esmolas e pequenos furtos. O mais velho tinha um temperamento tempestuoso e não admitia tal situação. Aos poucos foi encontrando pessoas que viviam a margem da sociedade e aprendeu o que tinha que aprender para sobreviver. Descobriu logo que o centro da cidade não era a melhor opção e a convite de um colega de ‘trabalho’ passaram a morar em um barraco na favela na z\s da cidade.

João completava nove anos e não tinha festa de aniversário. Azedo de fome dormia enquanto seu irmão trabalhava empacotando drogas no canto do barraco.

Aquela situação ridícula não se estendeu por muito tempo. Uma invasão da policia resultou na morte de seu irmão mais velho. João vagou sem destino madrugada adentro. Depois de um cochilo breve sentado no ponto de ônibus voltou a caminhar e por acaso encontrou um anjo em seu caminho.

A historia desses dois personagens apenas começou.

Essa historia não deve ser julgada por real ou fictícia, pois ela tem um pouco dos dois. Ela fala sobre a adversidade levada a um extremo inimaginável, mas possível em todos seus mínimos aspectos.

Alguns testemunhos que presenciei me inspiraram para sintetizar essa ficção baseada em historias reais

A.A.Bicalho - mais um entre milhares

Abner Bicalho
Enviado por Abner Bicalho em 25/04/2020
Reeditado em 12/10/2020
Código do texto: T6927883
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