Declaração de amor ao mundo caído

Era 23:19 horas da noite, mas quando se está em um hospital, você dificilmente dorme. Alessandra parecia distraída olhando para a televisão assim como os outros dois pacientes, e isso deu a tranquilidade para Gustavo, de sair um pouco daquele quarto para respirar ar fresco.

Enquanto se afastava, notou que Alessandra não prestava atenção enquanto ele andava para fora, e para ser mais específico: naquele dia ela parecia mais distante do que o normal, parecia que Gus nem estava lá, e que se ele fosse embora não faria diferença alguma.

Perto da porta, Evandro, que era cego, lhe chama e ele refaz o caminho para lhe atender:

- Estou aqui a sua direita, precisa de algo sr Evandro? - O paciente vira seu rosto em direção a Gustavo, os olhos dele eram tão claros que as vezes até pareciam enxergar.

- Você pode abaixar o volume da televisão para mim por favor? - Diz Evandro enquanto se vira para o lado oposto ao do som sinalizando que se preparava para dormir. Gustavo vai até a televisão e diminui o volume um pouco, mas percebe que isso incomodou Sam que prestava bastante atenção ao filme, de modo que ela o olhou com cara feia.

Gus volta ao Evandro e pergunta se estava suficiente:

- Agora está bom, muito obrigado filho, Deus te abençoe. - Responde Evandro agradecendo, e aquele foi o primeiro obrigado que Gus recebeu naquele dia. Gustavo se vira para Alessandra antes de sair e comenta, talvez inspirado pelo agradecimento de Evandro:

- Eu vou fechar a porta e você vai conseguir escutar melhor o som, acho que vou lá fora um pouco, ok? - Sam apenas balança a cabeça positivamente mas não o olha no rosto. Nisso Gus finalmente sai do quarto cerrando a porta atrás de si.

O corredor era cheio de enfermeiras e médicos andando por todos os lados, entrando e saindo dos quartos. Frequentemente alguém esbarrava em Gus e o cumprimentava, ele até falou com a Thamy, e com a Valéria, que faziam plantão noturno.

Quando chegou no primeiro andar, procurou por um lugar a parte, em uma grade. Finalmente só, ele começou a pensar na situação como um todo, na verdade, sua relação atual com Alessandra lhe incomodava bastante.

"E se ela não tivesse amigos para cuidar dela agora? O que exatamente seria dela? A vida é tão estranha, no fundo dependemos uns dos outros, quase que para tudo. É por isso que devemos ser humildes, porque um dia podemos estar nesse tipo de situação, precisando de ajuda. Acho que é importante aprendermos também a ser gratos, gratos por absolutamente tudo e sempre aprender a perdoar qualquer coisa que seja. Esse mundo é selvagem e a vida não tem tempo para opiniões mesquinhas e egoístas. Talvez isso se aplique mais a mim do que a Sam pra ser sincero, acho que eu deveria ignorar o fato dela não demonstrar gratidão e tentar ajuda-la sem esperar nenhum tipo de simpatia em troca. Acho que quando estamos cegos por cestas situações, não conseguimos enxergar quem está do nosso lado..."

Enquanto convencia a si mesmo de que era necessário para Sam, uma mulher se aproximou e o ficou olhando a uma certa distância. Ele fez sinal para que a mulher se aproximasse e ela chegou perto e perguntou, parecendo um tanto confusa:

- Você é acompanhante?

- Sim... Você está perdida? - respondeu Gus, e ela prontamente respondeu enquanto trocava seu celular de mão:

- Ah, não, eu só estava... Éhh, como se diz? Ah, eu só estava vindo respirando ar fresco. Você está acompanhando quem menino? - Ela parecia um tanto distraída na conversa, provavelmente mantinha um assunto paralelo pelo telefone, mas mesmo assim abordou Gus por algum motivo aleatório, nisso ele analisando a situação responde:

- Estou acompanhando minha amiga que sofreu AVC, estou no quinto andar. - A mulher agora parecia prestar mais atenção em Gus e então responde:

- Sério? Nossa, é igual meu caso. Estou acompanhando minha mãe que bateu a cabeça. Já estou a três dias dormindo aqui no hospital, sabe? Ela foi transferida do central semana passada totalmente desacordada, e foi recobrar a consciência ontem a noite. - Agora Gustavo entendeu por que ela o abordou: a mulher queria falar e desabafar um pouco. Se fosse uma situação normal, ele logo evadiria do assunto e iria embora, porém preferiu se distrair ouvindo a história daquela mulher. - Entende? Foi por Deus mesmo ela vir para esse hospital, se você ver a foto dela você nem vai acreditar que ela está viva.

A mulher pega o celular e mostra a foto de sua mãe caída no chão, desacordada, parecendo morta. Gustavo fica um pouco chocado ao ver a imagem e isso o leva a comentar:

- Ela está realmente viva?

A mulher balança a cabeça dizendo que sim, e ainda acrescentou contando a história do acidente até ao dia atual. Para resumir, sua mãe bebeu de madrugada, e alcoolizada caiu, batendo assim a cabeça. Começou então uma rotina de ida e vinda, de uma cidade do interior até Belo Horizonte todos os dias de carro, até que ela bateu o carro e quase morreu. Então a moça alugou um quarto perto do hospital e começou a viver em função de sua mãe, que nunca recobrou a consciência até ontem. Ela achou que essa situação ficaria assim para sempre, pensou ter perdido uma pessoa amada. Mas de repente a suposta moribunda acordou, e sucessivamente até estava rindo com sua filha. O que causou tal inconsciência foram os sedativos desnecessários vindos do hospital anterior, e quando cortados, fez a mãe recuperar a plena consciência, embora estivesse limitada pelo dano da queda em si. A filha terminou a conversa dizendo:

- Olha, eu sou cristã, e eu acredito em Deus. Você acha que ELE é um psicopata que deixa as pessoas sofrendo no mundo? Você acha que ELE fica rindo da gente lá do céu? Menino, eu vou te falar uma coisa, eu realmente acho que tudo nessa vida tem um propósito, nada é por acaso. Acho que sua amiga está aqui por uma razão, e ela só vai sair até que esse propósito tenha sido cumprido...

Gustavo ouviu aquilo com múltiplas emoções, pensou em retrucar ou até começar um debate, mas acontece que a conversa já estava sendo longa e ele tinha se arrependido de ter descido. Então preferiu receber aquilo como algum tipo de conselho. Ele concluiu que a mulher parecia usar sua própria fé como escudo emocional, e que ao falar com ele aquelas palavras, estava falando na verdade para si mesma. E aquela não era a fé original dela, provavelmente ela teve algumas recaídas em relação a Deus até chegar naquela conclusão final sobre sua situação.

Ela deixou Gustavo falando que iria ver a mãe dela, e prometeu voltar, porém depois de 15 minutos não havia retornado. Gus ficou um pouco observando o céu noturno sem pensar em nada em específico, apenas resolveu subir quando já tinha pegado no sono, e isso aconteceu quando já era 1:20 da madrugada.

Ele voltou ao quarto e todos já haviam dormido, menos Alessandra, que ainda olhava para a televisão. Ela olhou para Gus e mostrou o polegar, como que cumprimentando. Ele puxou a cadeira de plástico e se debruçou na ponta da cama dela, e lá mesmo dormiu (um pouco depois ela também adormeceu).

Foi a primeira vez em que os dois dormiram na mesma cama.