Decepção em tempo de pandemia

Gilberto Carvalho Pereira

Fortaleza, CE, 12/5/2020

A Enfermeira Ana Catarina acordou exatamente às 6h30, como tem feito nos últimos quatro meses. Levantou-se de sua cama, abriu a janela do quarto e constatou que o céu estava limpo, os pássaros cantavam suas canções preferidas, as árvores, com folhas e flores de diferentes matizes balançavam alegremente sob a ação do suave vento. Tudo estava tranquilo.

O companheiro, médico, ainda dormia, dia anterior trabalhara até à exaustão. Não iria acordá-lo, ele merecia aquele sono mais demorado, um prêmio por ter salvado muitas vidas durante seus últimos plantões. Infectologista, era sua obrigação, mas ele se desdobrava, sabia que tinha que ser assim.

A Enfermeira dirigiu-se à cozinha, preparou o café, colocou leite, bolo, pão, manteiga, suco de laranja, queijo e presunto. Fazia tempo que não experimentava dessas regalias, o café da manhã no hospital era simples, tomava-se até em pé, para não perder tempo. Tinha pacientes à sua espera. Ela olhou para o calendário fixado na geladeira e percebeu que estava no dia 27 de maio de 2020.

— Como o tempo passou rápido – pensou ela. Em seguida reformulou o seu pensamento:

— Na verdade não foi tão rápido assim. As longas noites passadas à beira de leitos de doentes com Covid-19, muitas vezes sem tempo para fazer as necessidades fisiológicas quando o corpo solicitava, eram angustiantes.

Dia 26 de maio o Ministério da Saúde decretara o fim da pandemia, governadores e prefeitos, o fim do isolamento social e consequentemente o, lockdown. As pessoas saíram às ruas, dançaram, gritaram, se abraçaram e cantaram. Foi uma noite de festas em todos os cantos do Brasil, era o fim de uma guerra sem tiros. Muitos permaneceram nas ruas até o amanhecer, muita bebida, sem briga, todos estavam felizes. O comércio, as fábricas, restaurantes abrirão amanhã, as pessoas voltarão ao trabalho, a economia voltará a girar. As pessoas poderão viajar, as companhias aéreas voltarão a voar, as crianças e demais estudantes retornarão às aulas. As feiras-livres, os ambulantes, os autônomos e todos os tipos de serviços poderão, novamente se integrar à força de trabalho do país. Ninguém será preso por não querer usar máscara. O andar nas ruas não será mais proibido.

Os shows com grande número de fãs acontecerão, as praias estarão livres para os banhistas, os estádios de futebol passarão a receber seus fanáticos torcedores, as academias estarão abertas àqueles adeptos ao Mens sana in corpore sano, as igrejas e templos receberão seus fiéis para agradecer, os pequenos comércios, as pequenas indústrias que sustentam grande parte da população brasileira, estarão abertas e funcionando a pleno vapor. As praças receberão seus costumeiros frequentadores, as crianças, os adeptos do lazer saudável, que para Dumazedier (2000:34)1 constitui em um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se, entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou a sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais.

Os bares e as casas noturnas receberão os seus fregueses habitués, os teatros estarão lotados para o público apreciar peças e assistir seus atores preferidos. Os cinemas, idem. O Brasil será novamente pujante e o brasileiro orgulhoso.

— Amor acorde, já estou pronto, são 6 horas e teremos que estar no hospital às 6h30, senão perderemos o café da manhã de lá. Hoje ainda são 12 de maio, o dia e noite serão árduos, amanhã você poderá dormir até mais tarde, - falou o marido ainda sonolento.

— Amor, sonhei que tudo já tinha passado, que voltamos ao normal em nosso dia a dia. Até quando vai durar isso? – completou a Enfermeira, decepcionada

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1- DUMAZEDIER, J. (2000) Lazer e Cultura Popular. 3.ed. São Paulo: Perspectiva.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 12/05/2020
Reeditado em 13/05/2020
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