Vai Que Sai

Trovoadas ao fundo. Um castelo inebriante. Não, não. Uma ilha deserta. Um náufrago alcança a praia. Não, não, não! Uma cidade movimentada. Uma chuva torrencial cai. E daí? Nada. O início era muito importante. A primeira frase, principalmente. Era o que decidia se haveria leitor ou não. Por enquanto, não havia nem escritor.

O bloqueio criativo já durava vinte e quatro horas. Restavam somente algumas poucas horas até o prazo de entrega da história. Seria uma colaboração para uma prestigiada revista de circulação nacional, focada em novas caras da literatura. Eu já não sabia mais o que fazer. A folha em branco, tenebrosa e atemorizante, me encarava. “Há! Você não vai conseguir!”, ela provocava. Estava certa.

Não, não estava! Não podia ser tão difícil! Vamos lá! Vou deixar o começo para depois. O enredo é o mais importante.

A sociedade moderna só pensa em trabalho. Todos estão sempre correndo para cima e para baixo; o contato social se restringe a diálogos monossilábicos. Quem nada contra essa corrente geralmente é mal-visto. É o caso de Georges. Preguiçoso, ria na cara dos malucos que, desesperados, viviam a aparecer em sua sala. Georges tinha trinta e oito anos e trabalhava na sala de xérox de um edifício comercial. Vivia num mundinho particular.

— Deixe-me adivinhar, vou ser retratado como um perdedor, gordo, careca, tímido e sem mulher? Que tal fugir um pouco dos clichês? — disse-me Georges, surpreendentemente quebrando a quarta parede; eu chamaria o pedreiro depois.

— Nem pensei nessas coisas. Ainda estou pensando em que tipo de conflito pode ocorrer. — disse eu, o narrador, o escritor, o personagem, a Georges — Por que você não me diz como gostaria de ser, então?

— Um vitorioso, gostoso, charmoso, desinibido e cheio de mulher! — Georges pediu, “humildemente”. — Outro problema é esse nome “frutífero” que você me deu. É muito bonito quando escrito, mas mulher nenhuma vai me levar a sério quando eu disser meu nome.

— Isto é um conto escrito, Georges. Ninguém vai falar em voz alta. O que está bonito escrito está bonito, e pronto! — comecei a me irritar; eu, o narrador-escritor-personagem. — Enfim, pense então num conflito que possa atingi-lo.

— Esse empreguinho também é bem cretino. Que tipo de conflito pode acontecer aqui se a minha função é só ficar tirando xérox das porcarias dos outros?

Georges havia se revelado um tanto inútil. Antes de totalmente excluí-lo, pensei mais um pouco se realmente não havia algum conflito que pudesse criar. Talvez Georges testemunhasse alguma coisa e, por ser um subempregado, sofreria represálias. O enredo tinha tudo para virar até um caso policial.

— Subempregado? Eu? Olha lá como fala, ô cruz-credo! — revoltou-se Georges.

Chega. Georges foi para o espaço. Apaguei tudo. Folha em branco, novamente. Ela me olhava com aqueles olhos sinistros, olhos que conheciam o meu drama. “Não disse que você não iria conseguir?”, ela perguntou, mais uma vez me provocando. Não tão rápido, monstrenga. Ainda havia algumas horas até o prazo. Eu tinha tempo. Não tanto quanto antes de criar Georges, mas tinha. A idéia me veio enquanto preparava um café; se eu soubesse!

Uma trupe de circo com tudo: mágico, malabarista, equilibrista e domador de leões. O diretor do circo está atolado em dívidas e sua única alternativa parecia ser a venda do circo. Isso colocaria na miséria todos que lá trabalhavam. Pronto. Havia um conflito. Com Georges, errei ao criar o personagem antes do conflito.

Como o Georges da sala de xérox nunca, de fato, existira, não havia mal algum em dar o nome de Georges ao dono do circo. Não sei o que gostei tanto neste nome, mas iria ficar até que algum nome melhor aparecesse. Enfim, conflito estabelecido. Faltava desenhar as características únicas de cada integrante da trupe, dar-lhes detalhes únicos. Eu sentia que estava começando a dar certo. O próximo passo, seguindo um “conselho” do Georges da sala de xérox, seria “fugir um pouco dos clichês.”

— E seu fosse o dono do circo e mágico? — Georges sugeriu-me, repentinamente. A quarta parede mal havia sido reconstruída e já foi quebrada novamente.

— Desculpe, o que disse? — o narrador, o escritor e o personagem perguntaram, em coro, já que eram a mesma pessoa.

— Que tal se eu fosse mágico, também? E, espera aí... Eu podia ser três coisas! Podia ser misterioso! Sim! — Georges pulava como uma pulga sexualmente estimulada. — Que tal se eu usasse uma capa? Não uma capa de mágico, uma capa do tipo Drácula!

— Você vai ser só o dono do circo. E está em dificuldades financeiras. Seu papel não vai ser nada misterioso... vai ser triste, isso sim.

— Papel triste? A vida já é tão triste e você quer mais uma tristeza, uma fictícia? Cara, parte pra outra! Ou melhor! Melhor! — e continuou pulando — Pode começar desse jeito que você falou. Daí, de repente, eu me torno um super-herói! E salvo todo mundo!

— O que você pensa que estou escrevendo? Uma fanfic para crianças de segunda-série lerem? É uma história para ser publicada numa das revistas mais prestigiadas do país! Do país! Se eu colocar um super-herói que resolve as dificuldades dum jeito bem deus ex machina eu vou ser linchado em praça pública!

Georges me olhou com desprezo. Deu meia-volta e fitou o horizonte – que eu mal me lembrava de ter criado. Distribuída ao longo dele estava a trupe do circo que eu mal tive tempo para elaborar mais. O Georges diretor de circo era o segundo personagem com o qual eu me desentendia durante aquele bloqueio pavoroso. Talvez o problema estivesse no nome? Será que o nome “Georges” estava carregado de um estigma tão poderoso que impedia qualquer liberdade por parte do escritor de direcionar seus personagens para onde queria?

— Não, senhor. O problema está no escritor. — disse Georges, antes que eu, seja por rancor ou para começar tudo de novo, apagasse tudo num movimento rápido e desolador.

O relógio, ditador incontrariável, apontava-me seus ponteiros. Ele, em coro com a folha em branco, me provocava: “É só uma questão de tempo.” Eu conseguia manter o otimismo – talvez fosse o café. Não era só uma questão de tempo. Escrever não é questão de tempo. Quando as idéias fluem com facilidade, um romance de duzentas páginas pode ser escrito em vinte minutos. Quando há tempestades e o mar da inspiração está bravo, uma pequena história de três laudas não sai em menos de cinco horas.

Rompido com o nome Georges, eu procurava por um novo nome para meu protagonista. Eu havia criado mais um problema, ao invés de caminhar em direção à solução. Ah, mas o mundo supervaloriza nomes. Já havia lido várias histórias onde não há sequer um nome. Em algumas, nem o protagonista revela sua graça. Por ora, minha história seria assim. Um sem-nome seria meu protagonista. Botei-o lá. Agora, só faltava a história. Só!

Ela demorou para chegar, mas chegou. Não, na verdade não chegou, mas marcou presença. A Dama da Inspiração, musa disputada por qualquer um que lide com arte de qualquer tipo, mandou-me um e-mail. Por que Ela – sim, em caixa alta – não fora me ver? E-mail, coisa tão impessoal – principalmente para uma moça tão bela. Talvez soubesse da minha situação e de como eu tentaria agarra-La como um adolescente na puberdade. Enfim, constava lá, na minha caixa de mensagens, um e-mail de “dama.da.inspiracao@suacabeca.com” que dizia somente o seguinte: “Vá até o seu banheiro.” Enigmático. Obedeci. Quando lá cheguei, entendi a mensagem. O jornal! Adorada Dama da Inspiração, até por e-mail consegue balançar meu mundo! Havia largado o jornal no banheiro, já que é um dos melhores lugares da casa para se poder ler com calma e paz.

Apenas uma página de jornal é o suficiente para transformar a tempestade no meu mar de inspiração num sereno fluxo, daquele que permitiria a escrita de um romance de duzentas páginas em vinte minutos. Rapidamente descartei as páginas de opinião, coisas inúteis – para que quero saber o que o bonitão da foto pensa das coisas? Enfim, a Dama da Inspiração estava certa, mesmo por e-mail. Lá no alto da página havia uma interessante história de um assalto a uma residência que terminou com o bandido preso na chaminé, bem ao estilo Papai Noel. Lembrei das palavras do Georges dono de circo: “A vida já é tão triste e você quer mais uma tristeza, uma fictícia?” Partiria para o humor, então. Narrar os altos e baixos da vida de um ladrão trapalhão – até a rima resolveu aparecer! Muito bem. Vamos lá!

Georges... ah, não; o personagem não tem nome.

Saiu de seu fusca enferrujado e olhou para o alto. Lá estava a sua porta de entrada para a casa mais bem-servida de ouro da região: uma chaminé. Desde pequeno esperava por Papai Noel para resolver os problemas de sua família, mas ele nunca aparecia. Até que um dia, surgiu-lhe uma revelação. (Personagem sem nome é fogo, os pronomes ficam vermelhos de tanto usá-los). Talvez não a pessoa de Papai Noel fosse resolver seus problemas, mas o método com que entrava nas casas. Para ser o melhor ladrão da região, é só entrar pelo buraco que menos gente esperaria que ele entrasse. Quem “tranca” chaminés? (Será que tem algum jeito de fazer isso? Nunca tive chaminé na minha vida...) Certamente não aquela família.

Parei por um momento e olhei o que havia escrito até então. Não estava bom. Não tinha Georges na história, mas mesmo assim sentia que algo artificial de mais se formava ali; não porque eu usava o computador para escrever. E outra: a revista sairia na próxima semana, e talvez a contemporaneidade dos fatos pudesse prejudicar a recepção do meu conto. Ai, ai, ai! Cartão vermelho e só um personagem havia entrado em campo – e nem nome este tinha!

Eu estava começando a ficar nervoso. Folheei mais os jornais e as notícias eram sempre as mesmas. Bala ali, assalto aqui, político ali e aqui, ações na bolsa, charges que serão indecifráveis daqui a duas semanas... Sem material algum. A Dama da Inspiração acertou na dica, o jornal é uma ótima fonte de inspiração – só que não naquele dia. Bem naquele dia! Olhei mais uma vez para o relógio, temeroso. Uma hora. Como meu texto seria enviado por e-mail até a redação da revista, eu poderia fazê-lo até com uns dez minutos faltando. Maravilhas da tecnologia moderna. Se tudo estivesse acontecendo alguns anos atrás, eu já perderia uma hora até tentar configurar o fax para mandar o bendito conto – que nem foi escrito ainda.

Foi quando Ela chegou. Não, eu tenho certeza: é em caixa alta, mesmo. Entrou pela janela em volta de um brilho dourado magnífico a Dama da Inspiração. Em Seu belo rosto, não havia um sorriso, mas uma expressão de quem iria me dar uma bronca.

— Você foi até o banheiro, mas não era o jornal que eu queria que visse! — Ela disse, com sua voz aguda tornando-se mais aguda ainda. — Volte até lá e olhe-se no espelho. É sobre isso que deves escrever.

Como o escravo que eu era Dela, voltei até o banheiro. Olhei atentamente para meu reflexo no espelho. Foi após alguns segundos que a solução atingiu-me como um raio – um raio tão poderoso que poderia partir um prédio ao meio: eu mesmo! Na falta de um enredo, de um personagem, de um conflito, esqueci-me que o meu próprio calvário na escrita de um conto poderia transformar-se num conto. Minhas desaventuras com personagens e enredos tornar-se-iam belas inserções de meta-ficção, um tanto raras hoje em dia. Ela havia cumprido a sua missão, a Dama da Inspiração. Eu já estava de volta à frente do computador; e a folha em branco não me era mais tão ameaçadora. Do contrário: parecia temerosa. “Não, não, por favor. Estou tão limpinha!”, suplicava. “Eu não acredito que você pensou nisso a tempo!”

Respirei fundo e pousei as mãos no teclado. Hora de começar. (Só tinha que lembrar de colocar a Dama da Inspiração em caixa alta).

Trovoadas ao fundo. Um castelo inebriante...

Ricardo Prado
Enviado por Ricardo Prado em 15/10/2007
Código do texto: T694721
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