A desilusão de Valentina

A desilusão de Valentina

Alexandre Santos (*)

Com os cabelos encobertos por um lenço e o rosto escondido por grandes óculos escuros, Valentina não estava confortável com o calor produzido pelo casaco de frio que vestia. O disfarce talvez fosse desnecessário, mas, naquela situação, ela não queria ser vista por ninguém, absolutamente ninguém. Tinha razões para isto. Aquela era a sua primeira vez [de Valentina] na Estação Rodoviária. Considerando o berço onde nascera e a forma refinada como fora educada em casa e nos melhores colégios do Recife, ela tinha boas razões para não querer ser vista à saída do metrô no Terminal Integrado de Passageiros e, muito menos, no ônibus no qual, ao invés do avião habitual, viajaria para Salvador. Embora para outras pessoas aquilo fosse coisa normal, para Valentina, andar de metrô ou viajar de ônibus era o cúmulo da humilhação. Não que ela nunca tivesse usado transporte público. Na Europa, por exemplo, para onde, até poucos anos atrás, viajava com frequência, sempre usava trens e metrôs. Mas, lá [na Europa], lembrava ela, os metrôs e trens não eram bagunçados. As viagens tinham um certo charme, pois eram feitas por todo mundo e não apenas pelos pobres, como no Brasil. Aliás, Valentina não lembrava ter visto pobres na Europa. Até motoristas e mecânicos, categorias por elas consideradas de segunda categoria, tinham vida boa, bem melhor do que aquela que, nos últimos meses, ela estava levando (foi forçada a admitir). 'Aquele, sim, é lugar para se viver', em seu devaneio, Valentina suspirou.

Vendo o corre-corre da ralé rumo aos ônibus que não paravam de chegar e deixar as baias, num vai-e-vem interminável rumo a destinos sem glamour, Valentina procurou desligar-se daquela realidade tão cruel e - enfrentando deliberadamente o sofrido contraste da sua belle-époque com a penúria vivida naqueles dias - buscou refúgio nas camadas mais profundas da memória, num mergulho que, inicialmente, a levou a tempos nos quais, acompanhando a mãe, a então menina Valentina visitava Dona Eustáchia, esposa do Coronel Epaminondas, mulher poderosa que, uma vez por mês, em reconhecido gesto de magnanimidade, recebia esposas de funcionários administrativos da Usina para um chá. A matrona dizia gostar muito de Valentina, cujo nome, todos sabiam, lhe fora dado em homenagem à mãe do velho Coronel. Naquele tempo, ao preço de uma ou outra decepção (como, por exemplo, as eventuais reprimendas públicas dadas pelo coronel, que era famoso pelo rigor como tratava a todos, inclusive os funcionários mais graduados), mesmo vivendo as dificuldades naturais da classe média, a família de Valentina frequentava a nata da sociedade. Daquela época vinha a sua amizade com a buliçosa Elvira, caçula do baronato que, segundo a tradição da aristocracia canavieira, estava fadada a casar com algum herdeiro rico. Um pequeno salto na memória trouxe Valentina para tempos mais recentes, quando, estudante na Faculdade de Direito, produzida com as modas encaixadas no bolso dos pais e, rivalizando colegas que também bajulavam Elvira, [ela] conseguia se manter na 'turma dos ricos' (ou, pelo menos, na turma que gravitava ricos). Aliás, mesmo quando, por uma razão ou outra, faltava dinheiro para acompanhar o padrão de vida de Elvira, Valentina dava um jeito de continuar enturmada na classe A.

Uma discrepância qualquer resgatou Valentina daquele tempo de boas lembranças e, por instantes, contrafeita, observou a Estação Rodoviária, sentindo crescer a repulsa por aquele mundo horroroso, ao qual, diga-se de passagem, chegara sem desejar. Ali, tudo era feio. Famílias numerosas, gente feia e mal vestida, conversas barulhentas, bagagens acomodadas em trouxas mal amanhadas, cacofonia do anúncio simultâneo de toda a sorte de bugigangas por camelôs impunes, sistema de som rouco e truncado, banheiros fétidos e imundos, mendigos insistentes clamando a misericórdia alheia por uma refeição, recomendação de cuidado com pertences pessoais. Um inferno! E Valentina explodiu: "Que merda!", ela disse baixinho, arrancando surpresa em si própria, pois aquele não era o seu linguajar usual. "Meu Deus! Será que, até nisso, estou mudando". Valentina não teve como conter o choro.

Para sorte de Valentina, entre um suspiro e outro, [ela] conseguiu retomar o devaneio, revivendo tempos nos quais vivia e convivia com os amigos ricos (na época, embora sempre sujeita a algum tipo de restrição, ela pensava que também fosse rica). Ah! Como eram bons aqueles tempos...

Valentina recordou de uma época (não tão remota, assim) quando, sem sequer lembrar da existência dos ônibus, frequentava aeroportos, fosse para viajar, fosse para receber amigos. É bem verdade que, de uns tempos para cá, nos governos esquerdistas, os pobres também começaram a andar de avião, retirando, pouco a pouco, o encanto dos aeroportos, cada vez mais cheios de pés-rapados. Aliás, tendo Dona Eustáchia como referência, Valentina odiava ver pobretões viajarem de avião - um transporte que, segundo acreditava, não fora inventado para a gentalha. A promiscuidade social não podia ser coisa certa. "Que Deus castigue mil vezes estes comunistas" era a praga rogada por Valentina ao governo socialista sempre que topava com pobres no aeroporto (ou em qualquer lugar). Assim como as amigas ricas, Valentina concordava com Elvira, para quem, diante do risco de encontrar o filho de uma empregada no aeroporto, "não há mais charme em viajar de avião".

Novo salto na memória lembrou Valentina de quando, seguindo a liderança de Elvira, ela se engajara na luta contra o governo populista. Foi um tempo divertido e de grande movimentação. Sem questionar conteúdos, ela passava o dia conectada às redes sociais, repassando mensagens contra o governo socialista. De vez em quando, em programas diferentes daqueles a que estava habituada (Valentina nunca fora afeita a comícios ou a movimentos políticos), normalmente encerrados com jantares charmosos, ela e as amigas, igualmente vestidas com blusas da seleção brasileira customizadas, participavam de concentrações e passeatas, esgoelando o 'Fora Dilma' orientado por Elvira. Sem entender de política, mas profundamente incomodada com a presença de pobres em ambientes que, até certa época, eram exclusivos da sua turma, no fundo, Valentina adorava aquela movimentação, pois, além de tudo, a mantinha na onda da turma rica, tendo um certo charme. Por outro lado, confiando no tirocínio de Elvira, Valentina jamais procurou saber quem eram os líderes nacionais do movimento e, sinceramente, acreditava que os problemas do País seriam completamente superados com a queda do governo corrupto de Dilma Rousseff. Em novo flash, a memória avançou mais um pouco, quando, finalmente, o governo socialista caiu. Quanta alegria! Valentina lembrava que a festa oferecida por Elvira reuniu políticos, usineiros, banqueiros, jornalistas, construtores. Todos os ricos estavam lá. Aproveitando a festa e falando como se também fosse líder do movimento, Valentina repetia aquilo que ouvira naquele período e, com um sorriso sincero, dizia que, sem a roubalheira do governo, tudo melhoraria.

Aos saltos, a memória trouxe imagens da posse do novo governo e da nova festa oferecida por Elvira aos novos tempos. Valentina recordou que, conforme esperava e torcia, em pouco tempo, o novo governo recolocou os pobres no devido lugar, depurando aeroportos, restaurantes, faculdades. "Lugar de pobre é na ladeira abaixo", sem medir o alcance das palavras, com um toque de crueldade, Valentina chegou a comemorar. Mas, a alegria de Valentina (e, também, do restante da sua turma) durou pouco, pois, embora (em comparação com os pobretões que ojerizava) se julgasse rica, a realidade mostrou que sua condição era inconsistente e ela não teve força para resistir à voracidade da política econômica implementada pelo governo, que, rapidamente, tragou empregos, rendas e clientes e, nesta esteira, sugou o poder aquisitivo das pessoas, levando muitas pessoas e empresas à falência. E, lembrou Valentina, repentinamente, veio o cataclismo - permanentemente no limite do cheque especial e pendurada no cartão de crédito, ela já não conseguia pagar as contas e, claro, manter o padrão de vida. Colhida indefesa pela crise, Valentina (e sua turma) descobriu tardiamente que, ao contrário daquilo que pensara por toda a vida, não era rica e, sim pobre. De fato, embora, do ponto de vista cultural, fosse muito diferente, do ponto de vista econômico, ela era tão pobre quanto os mais pobres, inclusive aqueles que, com desdém, chamava de 'mortadela' - pobretões que, segundo diziam os amigos de Elvira, em troca de um sanduíche de mortadela e vinte reais, participavam de passeata em defesa do governo socialista. De sonho, o mergulho na memória virou pesadelo.

Sem ter como escapar da triste lembrança, Valentina recordou que, depois de arrasar os pobres na forma da lei, a nova política econômica atingiu outros pobres, inclusive aqueles que se julgavam ricos (como ela e sua turma). Alguns perderam emprego, outros diminuíram o volume de negócios, outros, ainda, fecharam empresas e, sem exceção, todos reduziram o poder aquisitivo. E, com tristeza, Valentina descobriu que, a despeito do nome pomposo, dos modos finos e da arrogância aprendida desde a infância, ela também era pobre. Assim, banida das lojas e butiques, Valentina precisou reconfigurar seus padrões de consumo, suprimindo supérfluos, esquecendo as modas, optando pelas coisas mais baratas e mudando a forma como fazia suas viagens.

Desiludida e envergonhada, com olhos marejados, Valentina voltou à realidade da rodoviária apinhada. Não havia o que fazer. Resignada à nova situação, Valentina se preparava para seguir ao seu ônibus, quando atraída por um olhar fugidio, ergueu os olhos e, para sua surpresa, reconheceu na mulher igualmente disfarçada, que fugia às pressas de volta ao saguão, a sua amiga Elvira.

Era triste admitir, mas, ao invés de reclamar por encontrar pobres no aeroporto, Valentina e sua turma começaria a encontrá-los nas estações rodoviárias.

Coisas da vida!

Baseado em fatos reais, este conto, escrito em junho de 2018, se insere no campo da ficção tão bem retratado por José Américo de Almeida

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural