Criatura estranha

Golias era um mineiro natural de Itajubá. Até o final da adolescência, era franzino e muito tímido. No colégio, um dos melhores alunos da sala e, para sua infelicidade, vítima de provocações dos colegas impiedosos, que tinham inveja de seu desempenho destacado nas disciplinas mais difíceis, tais como matemática e física. Conta-se que os colegas de turma, certa vez, sorrateiramente, abaixaram as calças de Golias enquanto ele conversa com a bela e intocável Cecília, que, dizia-se nos corredores da escola, ser seu amor platônico. O fato lhe causou muito constrangimento. Na época, ele chegou a se ausentar da escola durante uma semana. Após seu retorno, os colegas decidiram deixá-lo em paz, não se sabe se por pena ou porque teriam cansado das brincadeiras maldosas. Para Golias, o motivo lhe era indiferente, o que importava era a sensação de estar finalmente livre de seus carrascos.

Quando completou 18 anos, Golias ingressou no curso de administração. Formou-se sem maiores dificuldades. Aliás, foi um dos melhores alunos da Faculdade, o que lhe rendeu um estágio em uma grande empresa.

Golias, que sempre tinha excelentes ideias, resolveu montar a sua própria empresa. Criou um negócio inovador voltado à preparação de pessoas para o ingresso no mercado de trabalho. Para muitos, constituía uma espécie de cursinho de coaching. O negócio teve um sucesso astronômico e Golias começou a ganhar muito dinheiro. E o curioso é que ele nem precisava trabalhar tanto, já que seus funcionários faziam tudo. Ele praticamente só recolhia o lucro no final do mês.

Com o dinheiro na conta, Golias decidiu que não queria ser o franzino de sempre. Matriculou-se em uma academia e passou a frequentá-la todos os dias. Insatisfeito com o resultado, ele começou a utilizar anabolizantes. Em questão de meses era outra pessoa. Os músculos cresceram e Golias passou a chamar atenção de muita gente, principalmente de seus funcionários que não compreendiam a mudança. Na época, chegou a fazer inúmeras plásticas no rosto. A alteração foi tão radical que os moradores do prédio não mais o reconheciam.

Golias passou a se amar loucamente. Em pouco tempo, o apartamento em que residia estava repleto de espelhos, isso para que a sua beleza fosse refletida constantemente. Ele adorava tirar fotos de si mesmo para colocar nas redes sociais. Já era figura conhecida no mundo virtual. Sem que soubesse, tornou-se motivo de chacota para muita gente, inclusive, para os antigos algozes da adolescência. As suas fotos, que para Golias traduziam a beleza ideal, eram compartilhadas por outras pessoas em forma de figurinhas aberrantes.

Os familiares de Golias se mostraram surpresos com a sua mudança. A filha, a pequena Alice, que antes da transformação era um grude com o pai, começou gradativamente a evitá-lo. Dizia para a avó, a mãe de Golias, que estava com o medo do “papai”, que, para ela, tinha “virado um monstro”. A avó levou ao conhecimento do filho, Golias, as palavras proferidas pela neta. Ele simplesmente respondeu que a filha ainda não compreendida o conceito ideal de beleza, que precisava amadurecer para entender que “o papai era o mais belo de todos”.

Golias, impressionado com a própria beleza, deixou os negócios de lado, mais precisamente nas mãos de um funcionário de sua confiança, que, ciente da desídia do chefe, passou a roubá-lo. Os desfalques foram crescendo até que a empresa foi à falência.

Após um dia de exibição em uma das praias mais badaladas do Rio de Janeiro, cidade em que residia e que era a sede da empresa, Golias adormeceu em seu apartamento. Durante o sonho, ele se viu na pessoa do antigo Golias, o adolescente franzino. Ele estava extremamente feliz e, diga-se de passagem, contente com a sua forma física e personalidade. Chegou até se divertir com as brincadeiras maldosas dos colegas. O sonho era prazeroso e durou muito tempo. Um detalhe chama a atenção: no mundo dos sonhos, ele ainda estava casado com a ex-mulher, que o abandonou após se assustar com a transformação abrupta de Golias. Foi no sonho que ele percebeu o quanto a amava.

Quando o dia clareou, Golias, enfim, despertou “sorrindo”. Era um dia ensolarado. Ele foi até a sacada do belo apartamento assistir à beleza do Rio de Janeiro. Foi aí que, olhando-se no espelho, tomou um susto e gritou: “quem é você?” Assustado, correu até o banheiro e, novamente, a criatura estranha estava do outro lado do espelho. Golias entrou em desespero e concluiu que ele era a criatura temida. E o pior, sabia que era impossível voltar ao passado e ser o antigo Golias. Neste momento, caiu em si e percebeu que havia perdido tudo, a mulher, a filha, que o evitava por medo, e a empresa, que, a esta altura, estava afogada em dívidas e em processo de falência.

Golias sentou-se no sofá e colocou as mãos no rosto. Como era inteligente tinha a plena convicção de que teria que conviver com a criatura estranha (ele) até o final de sua vida. A situação era irremediável. A beleza, que outrora era endeusada, tinha se transformado em feiura caricata. E o que era amor próprio se tornou ódio banhado a arrependimento e vergonha.

Finalmente, os espelhos amigos decidiram abandoná-lo e provocá-lo impiedosamente nas ocasiões em que se encontravam, tal como os antigos carrascos do passado.

João Matos
Enviado por João Matos em 18/05/2020
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