Carne nova no triturador

Carne nova no triturador

Outubro chegou trazendo novidades. Junto com lufadas de esperança e desilusões, a conclusão do Ensino Médio colocou muitos jovens na estrada, em caminhos podiam levar à universidade, ao mercado de trabalho, à desocupação ou, quem sabe, ao terreno pantanoso das incertezas.

Na casa de Floro Dias, era tempo de explicar ao filho ainda imberbe que, apesar de ele ter entrada quase certa na faculdade, por conta da crise, não seria possível dar-lhe o automóvel de praxe nas famílias de classe média alta. Na casa do velho Erivaldo Cisneiros (ele nem era tão velho assim) - ainda atordoado com a demissão depois de quase dez anos cuidando dos jardins da Pilgrimm -, o clima não estava bom e, por absoluta falta de dinheiro, não houve qualquer festa para comemorar a alegria dos gêmeos Patrícia e Hermes. Saídos a pouco da adolescência, como todos os colegas e cada qual a seu modo, eles [FloroJúnior, Patrícia e Hermes] viviam ou recalcavam sonhos e expectativas da mesma natureza - todos [eles] almejavam felicidade, sucesso e um futuro cheio de vitórias e de boas recordações.

Impulsionados pelos próprios desafios, cada um procurou o caminho mais adequado a seus sonhos e possibilidades e, durante os meses seguintes, ao tempo que FloroJúnior se preparava para o vestibular, aprofundando, revisando e reforçando as matérias já vistas nos cursinhos, Patrícia e Hermes cumpriam a rotina dos jovens pobres moradores das periferias - sem dinheiro e sem trabalho, gastando o tempo estéril nas ruas e vielas desprovidas de lazer e cultura, entregues ao nada-fazer dos desocupados ('cuidado com os desocupados, pois a desocupação é a mãe de todos os pecados', eles lembravam a frase ouvida por toda a vida), à espera do dia seguinte para reprisar a mesmice de todos os dias. E veio o esperado. Mesmo vivendo o plano inclinado que começara a deprimir a classe média em geral, FloroJúnior passou no vestibular e ingressou na faculdade pública desejada pelos pobres. De sua parte, sem os recursos dos concorrentes preparados nos melhores colégios, Patrícia e Hermes ficaram retidos na peneira que escolhe os futuros doutores e, indefesos, caíram no destino reservado aos pobres.

Sem qualquer referência ou pistolão, sem dinheiro (que, segundo o professor de história era 'o passaporte para tudo no universo mercantil no qual viviam'), sem hobbies ou passatempos que pudessem sustentar ou lhes ocupar, sem quadras esportivas onde pudessem exercitar o corpo e queimar energia, sem bibliotecas públicas onde pudessem ler ou estudar, sem qualquer atividade econômica ou social a não ser a convivência com outros desocupados, os filhos do jardineiro Erivaldo caíram na rua em busca de emprego. Não foi fácil, pois, sem dinheiro para nada, mal conseguiam imprimir cópias dos magros currículos. Além disso, já o vale-transporte estudantil, ficava-lhes quase proibido visitar possíveis empregadores. Aliás, passar no vestibular talvez fosse mais fácil do que arrumar emprego, especialmente para jovens, que, quando não [eram] barrados por placas 'Não há vagas', não tinham resposta satisfatória para a 'experiência prévia' sempre exigida para quase tudo.

Ao final de seis meses de buscas mal sucedidas, já desesperados, [já] sem qualquer apoio do pai, que permanecia desempregado, e [já] sem os pruridos e preconceitos próprios dos jovens bem formados, os filhos de Erivaldo finalmente conseguiram ocupação e, para o alívio das panelas e estômagos vazios, puderam ajudar no sustento da família. Não eram os empregos de carteira assinada que queriam, nem daqueles que gostariam de alardear ou admitir que exerciam (estes [empregos] pareciam ter desaparecido do País), mas, pelo menos, tinham conseguido ocupações que dispensavam currículo e, por incrível que pudesse parecer, ofereciam rendimentos superiores àquele que seu velho pai ganhava como jardineiro.

O interessante é que os primeiros empregos de Patrícia e Hermes surgiram quase ao mesmo tempo. Naquele dia, enquanto, acolhendo sugestão de um colega de turma também desempregado (mas, estranhamente, bem na vida), Hermes seguia para conversar sobre a possibilidade de emprego com um tal Manelato (que, ao que diziam, sempre tinha trabalho para gente disposta e 'sem frescura'), depois de uma conversa despretensiosa no salão de beleza, quando, em resposta ao seu 'continuo desempregada', ouviu um mágico 'sempre tenho ocupação para uma moça bonita como você', Patrícia foi convidada por Samantha para deixar o recato de lado e fazer valer sua beleza para ganhar dinheiro. Ainda naquele dia, iniciando uma vida na qual ninguém queria entrar e poucos conseguiam sair, já integrando o grupo de Menelato, sob a alcunha de Memê, Hermes fez as primeiras entregas de cocaína fazendo jus a R$ 50 por cada uma [das entregas] e, já na seleta equipe de Samantha, sob o codinome de Patty, Patrícia fez o primeiro programa, ganhando R$ 200 por cada cliente que fazia feliz.

E, assim, confirmando a propaganda do novo governo de que, para quem coloca o orgulho de lado, tem emprego para todos, depois de procurar no lugar errado por muito tempo, ao contrário do pai ainda desempregado, os jovens conseguiram trabalhar. Não eram os empregos que [eles] queriam, mas, jurando para si próprios que abandonariam a carreira começada por pura necessidade e desespero, graças a Deus, começaram a ganhar dinheiro e já não veriam a família passar fome.

(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural