O milagre

O milagre

Alexandre Santos (*)

O desespero bateu quando a chama que fervia o último punhado de arroz apagou.

Na véspera, quase chorando, Ritinha alertara que o gás iria acabar e não tinha dinheiro para comprar novo bujão, cujo preço tinha dobrado nos últimos meses. Não deu outra. Como esperado, o gás acabou e - em mais um salto no gradiente de miserabilidade que Roberto e Ritinha trilhavam desde que ambos perderam o emprego -, naquele dia foram forçados a comer coisas cruas e frias.

Roberto e Ritinha estavam desempregados há quase um ano e, à despeito de saírem todos os dias em busca de emprego, fora uma ou outra promessa, não viam qualquer chance de colocação. Estavam em maus lençóis. Não tinham a quem recorrer, pois todos os amigos e parentes também estavam desempregados ou já socorriam outros igualmente necessitados. Como a maioria das pessoas, eles não tinham qualquer economia. Aliás, sonhando subir na vida, eles tinham comprado as coisas que todas as pessoas querem ter - motocicleta, geladeira, televisão de tela plana, forno de micro-ondas, chuveiro elétrico, telefone celular, ar-condicionado - e, evidentemente, batendo as contas com as receitas, os salários não deixavam qualquer reserva para formar poupança. Além do mais, o período de salário-desemprego havia acabado há meses. Conformados com o fim do sonho de subir na vida, Roberto e Ritinha já haviam vendido a moto, o forno de micro-ondas, a televisão, o ar-condicionado e tinham desligado o chuveiro elétrico. Mesmo resignados à volta à pobreza, eles não estavam preparados para o retorno ao fogão à lenha. Mas, aquela era a triste situação na qual estavam. Sem ter, sequer, como comprar um bujão de gás, tinham chegado no fundo do poço.

Dali em diante não havia mais o quê fazer a não ser esquecer o orgulho e partir para a mendicância aberta ou disfarçada ou, se tivessem coragem, esquecer as coisas ensinadas pelo pai e partir para o crime, tomando dos outros as coisas que faltavam para si.

- Fique tranquila, Ritinha. Voltarei com a feira - e, deixando Ritinha exasperada, Roberto saiu de casa sem rumo.

Desesperado e sem saber o quê fazer, mas resistindo cogitar as alternativas que naturalmente o aguardavam na próxima esquina da vida, Roberto foi para o centro. Durante horas a fio andou ao léu à espera de um milagre. Talvez, quem sabe, surgisse um biscate qualquer. No começo do ano, ele lembrava, numa das vezes que fora à agência de emprego ouvir o 'não' de sempre, ganhara uns trocados ajudando a descarregar caminhões e a arrumar lojas. Podia ser que, desta vez, surgissem coisas semelhantes. Mas, o mar não estava para peixe e, daquela vez, não apareceu nada que pudesse render, pelo menos, um prato de comida para ele dividir com Ritinha.

Foi quando, cansado de andar, Roberto viu a fila que se enroscava pelo quarteirão na praça central. Lembrado do velho provérbio de que 'se fila fosse coisa ruim, ninguém entrava nela', ele fez como todo mundo e se encaixou na rabeira. Podia ser, quem sabe, como de outras vezes, quando, quase sem querer, ganhou peixes na Semana Santa, milho no São João e cestas básicas na eleição. O tempo passou, mas, desta vez, não apareceu ninguém para distribuir fichas. Não havia problemas, pois, sem nada para fazer, podia passar o dia todo ali. De tão absorto com o nada-fazer, progredindo pouquíssimos passos por vez, num caminhar quelônico e espasmódico de duração interminável, Roberto não sentiu o tempo passar (ou não passar) e nem, mesmo, [sentiu] a dor provocada pelo roçar entre si das paredes do estômago vazio. Aliás, como sempre fazia para suportar a realidade, Roberto desligou-se e, agindo como sonâmbulo por um tempo que não saberia precisar quanto, chegou a sonhar com os velhos tempos, nos quais tinha emprego, comprava coisas e fazia três refeições por dia.

E a fila andou, carregando Roberto consigo.

Quando Roberto deu por si, experimentando surpresa que quase o faz correr, estava diante de um guichê de banco. Atordoado com a situação, especialmente com o olhar inquiridor do caixa, Roberto o olhou de volta, assustado, sem dizer uma única palavra.

- Em que posso lhe ajudar? - o caixa perguntou, recebendo como resposta sincera um semblante boquiaberto de santa ignorância. Desconfiando estar diante de uma daquelas pessoas que mal sabem falar, o caixa resolveu guiar a conversa - Me passe os documentos.

Ainda sem entender a situação, Roberto meteu a mão no bolso e, rezando pelo milagre que lhe traria um emprego, passou a identidade e a carteira de trabalho para o rapaz, o qual, ato contínuo, começou a digitar o terminal do computador. O caixa voltou a falar minutos mais tarde.

- Como o senhor trabalhou em 2017 com carteira assinada e está inscrito no PIS/Pasep há mais de cinco anos, faz jus ao abono salarial - e, como por obra e graça do Espírito Santo, depois de pedir que assinasse uns papéis, o caixa passou quase novecentos reais a Roberto.

Mais tarde, vendo Roberto chegar em casa com um bujão de gás e uma pacote de compras, num misto de alegria e medo que o marido tivesse feito alguma besteira, Ritinha perguntou

- O quê você andou fazendo, Roberto?

Embora lembrasse apenas das últimas palavras do caixa, Roberto contou como recebera aquele dinheiro salvador.

- Então, eu vou lá amanhã - Ritinha abriu um sorriso e pulou para se pendurar por longos minutos no pescoço do marido.

O milagre tão esperado acontecera.

Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Escritores