O arrependimento de Felipe

O arrependimento de Felipe

Alexandre Santos*

Diretor de vendas da Pilgrimm, Felipe Pozzoloto tinha um perfil talhado para a função. Dinâmico, simpático, esperto, inteligente, ambicioso, pragmático, antenado, bem relacionado. Aquele perfil era, ao mesmo tempo, causa e efeito - condições que, permanentemente, trocavam posições para vezes impulsionar negócios, vezes impulsionar a carreira do jovem executivo. Felipe alcançara o cargo por ser daquele jeito e ele era daquele jeito por ser um diretor de vendas eficiente e bem sucedido. Sem aquele perfil, ele jamais teria chegado aonde chegou e, no exercício daquele cargo, sempre querendo crescer, sempre aprimorava aquele modo de ser, ficando mais dinâmico, mais simpático, mais esperto, mais ambicioso, mais pragmático e mais antenado. Se não conseguisse aprimorar (ou, pelo menos, manter) aqueles atributos e, sobretudo, aumentar (ou, pelo menos, manter) o volume de vendas seria, rapidamente, substituído por alguém mais dinâmico, simpático, esperto, ambicioso, pragmático, antenado e, claro, mais eficiente. Era assim no mundo dos negócios, o mundo que Felipe escolhera para si. Ali, na arena dos negócios, a competição era permanente e, sem espaço para compaixão, não havia lugar para fracos. Não era à toa que, como princípio de vida, Felipe escolhera a máxima segundo a qual "quem não tem competência, não se estabelece". Ele sabia que, se quisesse manter a boa vida proporcionada pelos altos salários e comissões, não podia descuidar nem da sua equipe de vendas, mantendo-a sob rédea curta e fazendo-a bater metas ousadas, nem [descuidar] de si próprio, zelando o aperfeiçoamento de seus atributos. Felipe não tinha como parar. Ele mesmo dizia que trabalhar no seu ramo era como andar de bicicleta - uma vez em movimento, mais nunca podia deixar de pedalar. Aliás, sem ter como barrar o escoar da ampulheta, Felipe ficava angustiado com o inexorável chegar da velhice e procurava compensar a perda da juventude com a experiência e o network, que ganhavam maior robustez com o passar do tempo.

Na realidade, o tempo transformara Felipe Pozzoloto numa águia permanentemente à caça de novas presas. Sempre alerta, com instinto potencializado por técnicas de interpretação dos sinais dos tempos, da força e da direção dos ventos, Felipe buscava chances de negócios em tudo e em todos. Aliás, o tino comercial de Felipe o levava a antecipar tendências e modismos, colocando-o sempre na vanguarda dos negócios e nas incursões inaugurais de terrenos férteis e searas promissoras. Era isso o que fazia dele, não só um profissional de sucesso, mas, também, o conselheiro mais influente da Associação Comercial de Valverde, onde representava a Pilgrimm no poderoso comitê de planejamento e de relações institucionais da entidade - um comitê estratégico, responsável pelo estudo de conjuntura e pela formulação de cenários, funcionando, na prática, como baliza para os associados, apontando-lhes os melhores caminhos a seguir. De fato, quem conhecia a Associação sabia ser aquele comitê, mais precisamente a cabeça de Felipe Pozzoloto, a origem das ideias que moviam os comerciantes nesta ou naquela direção, orientando o 'efeito manada' muitas vezes irracional aos observadores menos informados (além da questão psicológica, ensinara Felipe, havia uma justificativa prática para os comerciantes seguirem as orientações do comitê, pois, na pior das alternativas, todos errariam juntos e, neste caso, nenhum ganharia ou perderia posições relativas frente aos demais).

Nas discussões internas do comitê - sabendo recuar e transigir em questões não-essenciais para satisfazer eventuais colegas amuados e, assim, mantê-los prestigiados -, Felipe Pozzoloto estabelecia a pauta e encaminhava as propostas, sendo, no fundo, a pessoa que formava a opinião e firmava a agenda, o ritmo e a intensidade das posições tomadas pela Associação. Esta influência talvez fosse a razão de, em gesto de cumplicidade amiga, o deputado Breno Simões sempre antecipar-lhe o teor das mensagens que trazia desde os círculos superiores para o presidente Antero Souza - uma deferência tão especial que, em reciprocidade, independentemente da simpatia pessoal sobre o assunto, Felipe Pozzoloto sempre o acolhia com afeição, dando-lhe o máximo apoio possível. Foi assim, por exemplo, no processo que redundou no Impeachment de Anita Rastik, quando, entusiasmado com a possibilidade da pronta recuperação da economia brasileira, Felipe repercutiu a palavra do deputado Breno Simões e, como mantra inquestionável, incorporou o 'basta tirar a bruxa para as coisas melhorarem automaticamente' ao discurso oficial da Associação, reforçando a credibilidade da correia de transmissão que animava a todos. Aliás, de tanto repetir a ladainha, Felipe passou a acreditar piamente no bordão, ficando muito surpreso quando a crise persistiu após a queda de Anita Rastick. Na realidade, a continuidade da crise provocou um sério abalo na sua credibilidade [de Felipe] - que só não foi maior porque, acuado por todos os lados, na condição de porta-voz do governo, em nota à Associação, o deputado Breno Simões explicou que a situação deixada por Anita Rastik era pior do que aquela imaginada inicialmente e ainda demoraria algum tempo até a plena superação da economia.

A realidade é que, parecendo imune às mudanças ocorridas no Planalto (ou, justamente, por conta delas), ao contrário do que Felipe esperava, a crise recrudesceu, penalizando ainda mais o mercado e, portanto, os seus interesses pessoais. Aquele foi um tempo muito ruim para todos. Enquanto os negócios minguavam, sem ter mais o quê dizer aos sócios da Associação Comercial, os líderes lhes pediam 'calma e tempo para as coisas entrarem nos eixos'. Acontece que, para quem estava quase sufocado, sem oxigênio há dois anos, não havia como permanecer calmo ou esperar mais tempo.

Para onde quer que se olhasse, a crise era profunda. Na Pilgrimm, a despeito do rigoroso programa de redução de custos, incluindo as demissões para ajustar o quadro à realidade da economia (um gesto de sobrevivência recomendado pela Associação e referido internamente como o 'dever de casa'), a situação estava periclitante. As reuniões diárias no departamento de vendas eram deprimentes. Ao invés de reação (por menor que fosse), o movimento era pífio e declinante, típico dos períodos de recessão. Pior. Refletindo o volume das vendas, o montante das comissões passou a ser insuficiente para manter a equipe original e, sem alternativa, Felipe precisou dispensar três dos seis vendedores da empresa. Não havia mais o quê fazer.

A débâcle do executivo veio abruptamente.

Agastado pela desmoralização imposta pela realidade ao seu antigo discurso e, sem saber como aquele colapso estava acontecendo (afinal de contas, a bruxa fora escorraçada [do Palácio do Planalto]), Felipe Pozzoloto decidiu não esperar que o novo governo recolocasse a economia nos eixos e tratou de cuidar da vida. Inicialmente, preocupado com a própria sobrevivência, [Felipe] se afastou da Associação Comercial e mergulhou de cabeça no trabalho. Desceu do pedestal de diretor e, pessoalmente, como se fosse um vendedor comum, caiu em campo. Um comportamento, vale dizer, completamente inócuo, pois, à despeito da sua energia, simpatia, esperteza, ambição, pragmatismo e network, as vendas continuaram estagnadas. Claro, o problema não estava na ponta das vendas, mas, sim na ponta do consumo. Sem dinheiro, as pessoas podiam querer e até precisar dos produtos da Pilgrimm, mas não tinham como comprar - uma situação ruim para todos, pois, de um lado, elas [as pessoas] ficavam sem o produto desejado e, de outro [lado], os comerciantes deixavam de fazer as vendas que queriam.

Tomado por um misto de esperança, decepção e arrependimento, Felipe se perguntou sobre o quê, de fato, estava acontecendo, pois, embora a mídia continuasse alardeando a sempre 'iminente' retomada do crescimento e normalização da situação econômica, não havia qualquer indicador de que isto, realmente, estivesse acontecendo. Ele, mais do que ninguém, sabia que, progressivamente, as pessoas estavam comprando menos e menos.

- Foi para isso que botamos a bruxa para fora? - diante do fracasso das vendas, Felipe se perguntou.

Lá no fundo, vendo suas economias desaparecerem, ele lembrou de tempos atrás, quando, trocando de carro todos os anos e sendo paparicado por todos na Pilgrimm e na Associação Comercial, batendo sucessivos recordes de vendas, comemorando as gordas comissões. Bons tempos, aqueles. Com tristeza e um pouco de raiva do deputado Breno Simões, o empobrecido Felipe Pozzoloto convenceu-se que, se era para piorar daquele jeito, era mil vezes melhor que tudo tivesse ficado como antes e a bruxa tivesse continuado no governo.

Ah! Se arrependimento matasse...

(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural