Memórias da Sexta-feira da Paixão
 
     Sexta-feira da Paixão. Família reunida. Era o dia mais família do ano. Nos reuníamos na casa de vovó Tote e vovô Ioiô. Tias, tios e toda a primarada. Ah!, os agregados também. Aquelas pessoas que são quase parte da família.
     Lembro que naquele tempo tudo fechava antes do meio-dia. As barracas e as mercearias das redondezas. O comércio do centro do Recife nem funcionava nesse dia. Era feriado de verdade! Não existia shopping center como hoje em dia, com praça de alimentação que abre nos feriados. Tudo era muito simples.
     Vovó muito religiosa, não permitia música, nem bagunça, nem risadagem. Tínhamos que relembrar o sofrimento de Cristo. Claro que, pra nós, as crianças, tudo era alegria. Brincávamos, mas sem correr para não fazermos barulho. Passa anel, era uma das preferidas. As conversas infantis giravam em torno das presepadas feitas na escola. Não tínhamos celular nem tablet. Sequer imaginávamos que essas coisas existiriam um dia.
     Na cozinha, vovó e as tias fazendo a comida de coco. O feijão de coco que ela fazia, até hoje sinto o gostinho na boca. O arroz de coco, a peixada, o jerimum (quibebe) tudo de coco, e o bredo. Ah!, mais parecia um manjar dos deuses! Parecia não... Era um verdadeiro manjar dos deuses!
     As panelas imensas. Todo o trabalho na cozinha era feito com o maior carinho, comida feita com amor de vovó. Começavam cedo porque tudo tinha que estar pronto ao meio-dia. Nessa hora, tínhamos que estar todos sentados à mesa, fazendo a oração de agradecimento para começarmos a refeição. À mesa, sempre tinha algum primo mais engraçado que perguntava:
     -Vovó, se Jesus nunca casou, por quem foi que Ele se apaixonou? Ao que ela respondia:
     -Deixa de bobagem, menino! Jesus não se apaixonou por uma mulher. A Paixão dEle foi pela humanidade! Ele morreu na cruz para nos salvar.
     Após o almoço, a televisão era a atração, sempre com um filme com tema religioso, que aliás, passava durante toda a Semana Santa. Tv a cabo, YouTube e Netflix? Nem em sonho e nem na imaginação!
     Assim, passávamos o dia, naquele ambiente gostoso, feliz, cuja maior importância, era a convivência familiar, e é claro, o pesar pela morte de Jesus. Não tinha ovo de Páscoa e ninguém se preocupava em comprar chocolate. Às dezoito horas, escutávamos a Ave Maria e vovó começava a rezar o Terço, explicando que aquele era o momento mais importante do dia.
     No começo da noite, voltávamos pra casa com aquela sensação de felicidade e amor tão presente durante o dia e já pensando no próximo feriado em que estaríamos todos juntos novamente.

Camaragibe, 14/04/2020

Texto classificado em 4º lugar no I Concurso Lítero-Poético do Café Poético e Filosófico de Pão de Açúcar-AL