Pomos Maduros

Despertou e olhou para o relógio pregado na parede que apontava seis horas da matina. Como de costume, levantou-se e foi até o banheiro. Lavou o rosto, escovou os dentes e penteou os poucos fios de cabelo que lhe restaram. Quando voltou para o quarto reparou que o relógio ainda marcava seis horas. Teria estragado? Foi até ao seu celular que carregava na tomada. Estava desligado. Supôs que a energia elétrica tenha faltado na madrugada. Tentou ligar a lâmpada e não obteve êxito. Sim, era mesmo a falta de energia elétrica, pensou ele. Vestiu a farda e desceu os degraus rumo ao carro. Pela posição do Sol chutou que seriam seis e meia. Entrou no carro. Quando bateu na chave, nada. Estranhou. Bateu na ignição de novo e nenhum sinal. O carro também não funcionava. Tentou novamente e viu que nem a luz do painel acendia. Vociferou impropérios contra os deuses e contra os homens. Enraivecido saiu do veículo e foi para a cozinha. Resolveu fazer um café. O fogão não funcionou. O que estaria acontecendo? Já estava agoniado por estar tanto tempo sem internet. Morava numa área rural e sentiu-se isolado do mundo. Não passou muito tempo acordaram a esposa e os filhos. Contou o ocorrido. A família entrou em total desespero. Como poderiam viver sem televisão, sem geladeira, sem redes sociais? A mulher caiu em prantos e se recolheu no quarto. O filho mais novo batia o "tablet" no chão para ver se funcionava enquanto o mais velho já demonstrava sinais violentos da SAT ( Síndrome da Abstinência Tecnológica).

Ele sentou-se no sofá com os cotovelos sobre os joelhos e com os dedos enfiados nos cabelos. O que teria acontecido? De repente, ele reparou numa flor bonita sobre a mesa que parecia que morria por inanição e já estava sendo sepultada dentro de um jarro de porcelana muito bem ornamentado com caracteres asiáticos. Nunca tinha reparado naquela flor. Nem sequer sabia o nome. Foi até a pia da cozinha, encheu um copo de água e deu de beber a pobre planta. Saiu, foi até a porta e olhou para o céu como que se pedisse um milagre para o retorno das comodidades as quais estava habituado. Nem se lembrava mais há quanto tempo não olhava para a abóboda celestial. Estava um dia bonito, céu azul, Sol radiante e nuvens corredias e acarneiradas percorrendo a atmosfera. Baixou o olhar e se deparou com uma elegante e frondosa gameleira que aflorava no quintal rico em relva verdejante. Havia um sem número de pássaros em revoada e alguns pardais beliscavam uns pomos maduros que estavam caídos pelo chão. Provou um e achou delicioso. Havia muito tempo que só bebia e comia produtos processados. Por isso estava acima do peso, com a glicemia e a pressão arterial lá na estratosfera. Uma cadelinha bem pretinha apontou no portal da casa. Nem se lembrava mais o nome da perra. Chamou-a como os homens chamam os cães e ela veio toda saliente, rebolativa, orelhas baixas e sorrindo através da cauda. Veio e deu-lhe várias lambidelas nas mãos brancas e peludas. Pegou a cachorrinha no colo e sentiu o seu coração encher-se de ternura. Sentou-se no gramado e ficou aguardando que aqueles pássaros em revoada regressassem. A esposa observava a cena alienígena

pela janela do quarto de casal. Os filhos também. Desceram todos e sentaram-se junto dele. A esposa pousou o braço sobre seu ombro. Os filhos também. Todos ficaram fitando o horizonte, encantados com a beleza do dia, aguardando o regresso dos pássaros de arribação, devorando os pomos maduros .

Gil Ferrys
Enviado por Gil Ferrys em 21/06/2020
Código do texto: T6984270
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