QUEM VÊ POSE NAS PALAVRAS... NUNCA VÊ PRODUÇÃO

Talvez seja ele um personagem conhecido da vida de qualquer um de nós.

Há muito tempo e logo nos seus primórdios profissionais, me contava ela que o conheceu ali, na labuta do trabalho árduo e multidisciplinar.

Todos os meses, como era de praxe, a equipe se reunia para discutir questões relativas ao ofício de cada profissional, bem como o conjunto da obra do todo ao todo, que consistia no nobre atendimento à saúde da população.

Ele, de porte atlético, bem postado, falava bonito.

Para tudo que acontecia no meio ele sempre apresentava a antologia teórica das resoluções infalíveis, dum jeito tão acadêmico que ela se perguntava por que aquela criatura tão nobre não estaria no corpo docente duma universidade, a orientar o caminho das melhores cabeças.

Seria mais produtivo do que se perder um gênio daquele porte que não conseguia exercer a sua genialidade...num lugar comum.

Um gênio indiscutivelmente encantador por palavras...

Sempre que a reunião começava era ele quem ,de peito expandido, logo tomava a frente das colocações do dia para discursar, a vibrar a laringe, não apenas sobre suas insuperáveis dificuldades de executar seu trabalho com excelência profissional, o que a população merecia, mas principalmente para, indignado, justificá-las baseando-se nas históricas dificuldades das políticas públicas do seu país.

Aquilo era bonito de se ouvir, contava ela.

Era emocionante. De se ir às lágrimas com tamanha comoção e altruísmo ao bem estar alheio...

E ela era apenas uma iludida iniciante naquele "meio". Acreditava.

O dicionário do dito cujo era extremamente específico, uma espécie de "politiquês" elaborado com palavras retiradas dos livros das Ciências Políticas, palavras de solidariedade, de compromisso, de empatia , de compaixão, de acolhimento ao próximo.

"Somos atores dos nosso caminhos, precisamos reivindicar condições para atuar cada vez melhor. O povo urge!"

Aliás, o termo "acolhimento" era como um mantra na fonética daquele nobre ser vocacionado ao amor ao próximo, cujas palavras que soavam do púlpitos das reuniões, entonadas como um discurso solfejado, mais pareciam orações às dores, via notas bem postadas num belo fraseado musical.

Um canto-chão aos sem chãos...

Suas críticas ácidas e tenazes ao todo angariavam palmas da plateia e encantavam a direção institucional.

Com o tempo, contava, ela se apercebeu que aquele fluxo linguístico nas reuniões eram como fitas gravadas que rodavam repetitivas a qualquer proposta de trabalho real, sempre retroalimentadas pelo mesmo alicerce das iguais fundamentações "mas, nesse cenário, não somos atores dessas causas que não são nossas", "não podemos exercer protocolos teóricos de épocas que abandonaram o povo!", "segundo a página dois, da obra do fulano de tal, essa tática de trabalho é infundada para esse alvo populacional", e assim seguia ele, na teoria sempre pronta a refutar a prática edificante, ainda que fossem para pequenas e necessárias mudanças a melhor.

É que tudo bem trabalhado daria muito trabalho.

E o restante da equipe, contava ela, se retorcendo para dar conta do trabalho de cada um que sempre se avolumava pelo tempo perdido frente ao discurso de outrem.

Chegou o dia em que ele necessitou tirar uma licença por doença, e assim, os ossos da sua coluna, cansada de segurar sua pose, o retiraram do discurso do pensamento por quase um ano.

Não se ouvia mais discursos e o trabalho corria bem produtivo e sem muitas dificuldades...

A Direção, então, passou a sempre lamentar sua falta nas reuniões, bem como a ausência dos seus discursos tão eloquentes em ideias mirabolantes e que durante anos nunca vingaram na prática.

"Nossa reunião não é mais a mesma, como o trabalho dele faz falta...". Afinal...

Nenhuma criatura normal conseguiria com seu trabalho árduo, comprometido e exemplar, ultrapassar em reconhecimento aquela sua produção discursiva indispensável ao inerte.

Quando voltou da licença foi recebido com festa e salva de palmas com a seguinte faixa na entrada do recinto:

"Agradecemos com alegria a recuperação do nosso insubstituível colega, grande companheiro colaborador; sentimos muito sua falta. Seja bem vindo de volta ao grande trabalho".

Não lhe faltou o discurso de agradecimento:

"Agradeço essa recepção tão calorosa, sei que fiz falta ao todo, e hoje retorno com os mesmos votos de sempre, dum recomeço comprometido e produtivo em nome do acolhimento de toda a nossa querida população".

Desceu as escadas e, ao entrar na sua sala, logo foi interceptado por um ingênuo usuário da unidade: "que bom que o senhor voltou, será que eu poderia..."

E lá veio o discurso gravado:

"Amigo, eu adoraria lhe acolher,como sempre fiz, mas infelizmente hoje estou indisposto, meus ossos estão doloridos e já estou saindo para uma consulta agendada no meu médico. Hoje tenho pressa e só por ora não poderei trabalhar no seu acolhimento...".

E o necessitado homem ainda tentou:

"Mas o povo urgentemente precisa de..."

Contou-me ela a resposta que ouviu sem querer ouvir:

"Amigo, o povo não é problema meu...procure a Direção."

Assim, mais uma vez, aquele seu discurso de sempre nem poderia ser transformado em trabalho dobrado aos que, do entorno, não nasceram com o jogo de cintura para transformar perenes discursos críticos em descanso perpétuo.

Conta ela que ele nunca mais voltou ali.

Foi promovido a chefia de algum lugar mais necessitado de discursos.

Anos depois, contou-me ela, soube-se que, bem lá atrás, o tal encantador de palavras tinha perdido o verbo no campus e sumariamente havia sido dispensado do meio universitário .

Motivo?

Um justo vendaval dos docentes em meio a tantas discentes palavras ao vento...