O Charada (26.07.2020)

Hoje o dia foi puxado no trabalho.

Depois de passar o dia com os miúdos, tendo a oficina de papelão como última atividade da colônia, subi para a recreação dos maiores, me vesti de Charada e entrei no mundo de Gothan City, a fim de brincar também.

Meu personagem tinha a roupa toda verde, fiquei com aquele meu tênis All Star vermelho mesmo, aquele de cano longo, até porque o sapato do personagem era muito grande para o meu pé. Aproveitei que já estava mesmo de trancinhas embutidas, coloquei aquela máscara do _V de Vingança_ virada para a nuca (essa era a charada!), pintei vários pontos de interrogação na cara com aquela tinta preta que não sai e fui andar pelo condomínio.

As crianças deveriam me achar, não é? Para pegar charadas, resolvê-las e libertar seus companheiros da prisão do meu amigo Duas Caras. Enfim, uma brincadeira realmente muito legal (que eu, até hoje, já executei duas vezes e exercendo a mesma função verde limão e tênis).

Ao final da brincadeira, quando dei a eles a charada que, se resolvida, daria a eles o _poder_ de apanhar e derrotar os coringas, fui me trocar e guardar a roupa do personagem de volta na caixa de materiais, toda bem bonitinha e dobradinha. Vesti novamente aquela farda que tenho orgulho de chamar de minha, que possui a _logo_ da melhor empresa de recreação, aquela mesma com o nome em inglês engraçado! Verifiquei se todos os meus pertences estavam na mochila e fui ver o desfecho da brincadeira.

Muito mais tarde naquela mesma noite, pois aquela foi a última brincadeira do último dia da colônia de férias naquele condomínio, estava eu no ônibus lendo meu constante companheiro. Juro que li uns dois ou três só durante essas viagens de ônibus de casa pro trabalho e do trabalho pra casa. O melhor trabalho que eu poderia ter encontrado!

Cheguei em casa, coloquei a mochila no canto, sem querer pensar em arrumar o que estava dentro e fui tomar banho.

Porém, ao entrar no banheiro, parei ao ver aqueles tão conhecidos olhos castanho-escuros me fitando pelo espelho. Mas aqueles olhos estavam agora rodeados não somente pelos óculos, mas por vários pontos de interrogação.

Naquele momento percebi que, durante boa parte da minha vida (14 anos dela, para ser mais exata), eu sempre me perguntava quem eu era, para quê, cargas d’água, eu servia, queria saber minha verdadeira identidade, sem sempre acatar o que os outros diziam sobre mim por falta de opção, já que não tinha ainda o saber do que eu mesma dizia sobre mim...

Passei 14 anos sem saber... Passei 14 anos sem chegar a ser algo. Mas depois _daquele_ dia, comecei a perceber minha vida e o que eu realmente sou! Até consegui um trabalho, ora vejam só! Um trabalho onde eu me encontrei, ou pelo menos uma parte do que me compõe de verdade.

Observei meu reflexo sorrindo pra mim ao notar que, depois de ter aquelas antigas perguntas respondidas, eu estava agora com interrogações estampadas na cara e todos que passaram por mim olharam sem entender, exatamente como eu me sentia antes... Bem antes.

Essas interrogações sempre estiveram somente na minha cabeça, mas agora estão bem na minha cara... Porém, estão respondidas. Parecia que vieram para me atormentar, mas acontece que elas não têm mais força! Achei até meio simbólico o momento em que lavei o rosto durante o banho, como sempre faço, mas dessa vez ia constantemente de volta ao espelho para checar a expulsão das agora somente meras manchas pretas na minha cara.

O rosto limpo e refrescado, depois de um tanto de esforço. Da mesma forma minha vida, durante todo aquele tempo anuviada por perguntas sem as minhas respostas e sim com as dos outros. Mas hoje, completamente transformada em um lugar onde posso respirar e sentir o frescor do que ela realmente nasceu para ser.

Finalmente limpa.

Finalmente feliz!

Paulia B. Sousa

Paulia Barreto
Enviado por Paulia Barreto em 26/07/2020
Reeditado em 22/10/2020
Código do texto: T7017810
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