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MEMÓRIAS


 
Já não ia à minha terra natal desde que, antes do serviço militar obrigatório,  abalei para a capital.
Muita coisa tinha mudado: quando eu era miúdo, o largo da estação, pomposamente denominado de interface de transportes, mas que na realidade mais não era que uma estação de comboios de segunda linha, bem como ponto de chegada e partida para duas carreiras de autocarros, concorria com uma pequena praça para um só táxi, que mesmo assim pouco serviço fazia.
O cinema, distração três vezes por semana para quem não tinha televisão em casa, exibia filmes já passados nos cinemas da capital, onde antes donzelas suspiravam perante melodramas em voga, já tinha sido demolido, o dono endividara-se e acabou por vender o edifício, já a pedir demolição...
Havia alguns cafés e apenas um pequeno restaurante, sobretudo a funcionar para  viajantes que por ali passavam.
Para além de uma fábrica de produtos químicos, concretamente de adubos, e que empregava a maioria da mão de obra disponível,  outra das atividades era a pesca artesanal, com redes de pequena malha. 
Era uma terra pobre, de gente pobre.
Familias numerosas, habitavam em barracos, amontoados e sem grande diversão exceto o clube da terra, onde funcionava em horário reduzido uma TV a preto e branco, um caixote dos anos sessenta. Todos se acotovelavam para ver as séries de ação que eram exibidas semanalmente, tornando-se um vício, tal como o são atualmente as telenovelas.
Agora vêem-se prédios altos crescendo por todo o lado, autênticos cogumelos de betão surgindo do nada, fazendo com que a exploração imobiliária faça desaparecer aos poucos as casas antigas, acanhadas, sem condições .
Projeta-se a modernização das vias e também vários centros de dia para a população mais idosa. Parques e zonas de lazer para novos e velhos, onde se ocupam de forma saudável.
Vive-se a era dos centros comerciais, uns mais pequenos, outros de média dimensão, constituindo-se,  a par dos hipermercados, como catedrais de consumo.
A expansão também se evidencia pelos dois cemitérios, um como prolongamento do mais antigo, e que até já possui crematório.

Retornando às melhores memórias, Ti Manel era o pescador mais popular entre a pequenada. Amigo de todos, quando regressava da faina, tinha sempre uma fataça ou um pequeno pargo para oferecer aos petizes que sabia conviviam com a fome lá em casa.
Encontrei causalmente um dos meus colegas de meninice, que me contou, com grande pesar, sobre a recente morte de Ti Manel. De constituição frágil e tendo ultrapassado os setenta e oito anos com várias mazelas no corpo franzino, fruto do frio que o colhia nas noites de faina, mal agasalhado, apanhara uma pneumonia no início da primavera e fora um dos primeiros contagiados da zona em termos de COVID-19, acabando por sucumbir em completo isolamento. Na altura nem sequer havia respiradores em quantidade suficiente para as necessidades.
Lamentei profundamente só ter tido conhecimento da morte dele duas semanas após o infeliz desenlace. Soube que muitos dos que Ti Manel ajudara compareceram, mas devido às regras estritas em vigor, somente três deles, para além do padre e dos coveiros, puderam acompanhar o féretro à sua última morada.
Fazer bem sem olhar a quem, essa era a sua frase preferida, que recordo com muita emoção. Nesse dia chorei pela morte e também pelo funeral tão pouco digno de um cristão, talvez fruto de um excesso de zelo das autoridades.
É a vida...




 Nota do autor: este conto é baseado em factos reais.



Bruce Springsteen-My Hometown-Legendado PT-BR
https://www.youtube.com/watch?v=ak68kyg5w_o






 
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 27/07/2020
Reeditado em 27/07/2020
Código do texto: T7018278
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