A fênix de Agar

Renato ligou para Mara por volta de uma da tarde de agosto de 1997, dividido entre a timidez e o entusiasmo. Tímido por não saber como pedir o favor, mas entusiasmado com a obra que tinha em mãos e que poderia levá-lo a mudar de vida. Tratava-se de um livro no qual há muito vinha esmerando-se. “A Fênix de Mayanápolis”, título grafado na primeira capa, logo acima de Renato Agar, o nome autoral, permanecia para seu olhar enquanto os dedos deslizavam nas teclas do telefone, pressionadas uma após outra, para em seguida ouvir a campainha soar ao longe, até Mara pronunciar o salvífico alô.

– Alô!!!... é Mara.

Nem bem ouviu o nome da amiga e voltou o fone ao gancho, sem dizer palavra. Entrou numa de não saber no que aquilo haveria de dar. Ela aceitará? E se interpretar meu pedido como exploração? Cobrará muito pelo trabalho? Terei grana para saldar mais essa? Uma ladainha interrogativa tomou-lhe a mente. Buscando vislumbrar justificativas de si para si, fortes para convencê-lo a ir adiante, foi à cozinha, tomou café e refez o procedimento da chamada, aguardando o último toque.

– Alô!!!... é Mara.

– Mara, é o Agar...

– E aí, amigo, há quanto tempo?!! Tudo bem?

– Melhor agora, falando com você.

– E o que tem para mim, interpelou Mara, objetiva.

– Então... você sabe... há cinco anos estou metido na escrita do meu primeiro romance... dias desses dei por concluído. Mas, amiga, preciso de alguém para fazer a revisão ortográfica e gramatical... lembra no colégio?... nunca fui bom nisso.. e, aí, pensei em encomendar-lhe essa tarefa. Agora, duas coisas: está disposta? Quanto me cobrará?

Mara o cumprimentou pelo empreendimento e anunciou a decisão:

– Parabéns, Renato! Revejo sim, pode crer. Preço combinamos depois.

Não sou de explorar, muito menos amigos... até por um agradecimentozinho ao meu nome constando em sua obra estou disposta a revisar seu texto.

– Que bom!..., disse Agar, sorrindo satisfação. Ao mesmo tempo, pensou na bobagem que sentir antes de falar à Mara, pessoa tão bacana, e continuou a conversa que por uns trinta minutos sobre sua obra. O livro tratava da vida de um rei da música popular nacional, o qual Renato associava à Fênix, a ave da mitologia de antigos gregos, egípcios e chineses. Rara, do porte de uma águia, Fênix era única no mundo.

Tinha penas ouro-vermelho. Habitava desertos, sob sóis causticantes. Ao notar o fim da vida, ela recolhia ervas aromáticas para fazer um ninho que logo se incendiava e em cujas chamas perecia. Mas não se extinguia por completo. Seus restos mortais viravam vermes, os quais se transformavam em nova ave, encarnada e esculpida à que havia se queimado. Por renascer das próprias cinzas, Fênix é sinal de virtude, inteligência e felicidade, além de simbolizar o sol, que expira à noite e volta ao amanhecer, indicativo do movimento de renovação de todo o mundo natural. Então, se assim era, a ave caía como luva para a mão do personagem que retratou em seu romance.

No dia seguinte, Mara já estava com os originais em mãos. Ela pediu trinta dias para ler as 230 páginas. Durante esse tempo, Agar viveu a ansiedade de ver as opiniões dela, o que pediria para apagar, refazer e reformular... “tudo para facilitar a vida do leitor”, pensava ele, que acolheria tudo o que não contrariasse o essencial de suas idéias ali retratadas.

Terminado o prazo de um mês, Agar voltou a ligar para Mara, que o convidou para ir imediatamente ao apartamento dela. Ele foi. Tudo o que precisava ser corrigido estava ali, marcado à margem de cada mancha gráfica. Ele concordou com quase tudo, afinal, Mara lecionava há mais de dez anos e era especialista em literatura brasileira, além de estar se doutorando na mesma área em uma reconhecidíssima universidade. Ele só ficou cabreiro ao final da conversa, que se deu nos seguintes termos:

– Agar, disse Mara, você não precisa se preocupar com a correção. Como me trouxe o disquete com os originais em arquivo eletrônico, eu mesma faço isso para você, imprimo-lhe uma cópia e, aí, daqui a oito dias, no próximo domingo, você vem, almoça comigo e leva sua obra, até encadernada porque faço questão de participar desse seu projeto.

– Não, retornou Agar, não precisa disso. Não quero te dar esse trabalhão. Você já fez muito por mim e meu livro. Deixe que eu mesmo digito as correções, apago, insiro e reescrevo o que tem de ser refeito.

Mara ouvia isso meneando nãos com a cabeça e argumentou que aquilo não lhe custaria nada, além do que, jamais esquecera o que Agar havia feito para ela ainda na graduação, quando ela teve uma crise de apendicite e ele não apenas a levou para o hospital, mas a acompanhou até sua alta, lembrança que fez Agar umedecer os olhos e, no calar da emoção, afrouxar sua resistência:

– Tá bom. Faça tudo então, Mara. Te agradeço desde já... mas, quanto tudo isso me custará?

– Metade de seus direitos autorais, brincou Mara, que completou dizendo que, dali a oito dias, quando ele voltasse para apanhar sua obra encadernada, ela lhe apresentaria o preço.

Os próximos oito dias foram de angústia para Agar. De segunda a sábado, todos foram dias estreitos, difíceis por causa da ansiedade que lhe crescia quase de modo incontrolável. “O que me acontecerá, quer dizer, ao meu livro, nas mãos da Mara? E se ela meter a mão onde não deve? Aí terei aquele trabalhão de refazer tudo o que ela fez?”, indagava-se na insegurança quanto ao desfecho daquela história.

Mas domingo chegou. Às dez da manhã, como haviam combinado, Mara e Agar, no apartamento dela, apertaram-se as mãos. Ele não falou de pronto no livro porque ela já estava de avental, fazendo a lasanha que comeriam por volta do meio-dia, mas que, segundo Mara, era enjoada de fazer e tinha de começar cedo. Enquanto o prato era preparado, eles conversaram sobre a vida. Ela, sempre segura e contando suas conquistas. Ele, lutador, vacilante em seus projetos, cuja maioria, nos últimos anos, havia ido por água abaixo.

Assim, ficaram até a hora de sentar à mesa, quando, logo após terem compartilhado a lasanha. Mara lhe fez a revelação:

– Agar, seu livro não mais está comigo. Ele já tem editor e tudo. Eles vão mandar o contrato para sua Casa. Aguarde!

Agar ficou atônito. Poderia a amiga ter feito aquilo, sem ao menos consultá-lo? Mas agradeceu a supergentileza de Mara, pensou até que ela estava lhe fazendo o bem, e tornou a indagar sobre o quanto aquilo lhe custaria. Mara deu de cabeça, mostrando uma quase indiferença, e disse que o que se faz a um amigo não tem preço, que aquilo não lhe seria cobrado.

Agar viveu os próximos meses de modo inquieto e tenso. Mara nunca disse a que editora o livro teria sido enviado. A cada indagação de Agar, respondia sempre que ele saberia, editora nacional, quando o contrato baixasse em sua caixa de correios. Três meses e nada de contrato. Por isso, para se safar da agonia, visitava lojas de livros e ficava sonhando com o próprio nome em um deles. De repente, viu um com um título que lhe fez perder o fôlego: “Fênix de Mayanápolis”. No lugar do nome que teria de ser Renato Agar estava grafado Mara Abeguar. Aí ele entendeu toda a história.

Há poucos dias, Agar voltou a sorrir. Voltou a entregar-se ao sonho de ter um livro seu na estante de alguma livraria. Estou torcendo muito para que seja “Os meandros do conto do vigário”, o romance no qual ele está trabalhando agora. Para não perder o costume, dia e noite, noite e dia.