Independência e consorte

Uma vez, meia-noite, está Mário Augusto fumando à janela, enquanto todos dormem. Na rua quieta, só os raios da lua-cheia desenhando as folhas das árvores no cimento do passeio, ao capricho do vento. De repente, não uma nuvem, mas o Pássaro Madrugador, que tudo obscurece, tapa a Lua, essa moeda brilhante. Mário Augusto sente um arrepio que nem se um chacal estivesse arranhado seu cangote com a ponta da unha, bota as mãos no rosto, os cotovelos no peitoril e deixa escorregar dos olhos duas contas, qual fossem mesmo duas lágrimas. Quando o cheio da Lua volta, ele suspira. Fecha as janelas imediatamente e caça cama.

As finanças vão bem, obrigado. A loja vem aumentando as vendas a cada dia que passa. Com seis anos na praça, Mário Augusto já é o comerciante mais promissor da cidade. O que mais progredia.

E Marilda? Uma bela mulher cheia de corpo e saúde, expandindo beleza e viço por todos os poros. O filho é um garoto, esperto e muito bonito, como diz o compadrio circunstante. E é mesmo. Não há garoto mais saudável nos seus quatro anos.

A casa? Bem, não é um luxo, mas tem tudo de conforto. Tapetes acolhedores na sala de visitas, um sistema de som para a vitrola que é uma pureza, dois quartos carinhosamente mobilhados e decorados com gosto... que mais há a desejar? Um carro? O segundo vem na próxima semana.

Sete de Setembro. Independência. Naquele dia, manhãzinha ainda e, antes da Parada dos estudantes, Mário Augusto saiu de casa pra buscar o pão e o leite e nunca mais deu sinal de vida.

(Brasília, DF, 06/04/1975)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 13/09/2020
Reeditado em 13/09/2020
Código do texto: T7062547
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