AVISO: este texto é recomendado às pessoas que tenham a idade na faixa de 45 a 60 anos. Se você não estiver dentro deste parâmetro, certamente o tema não irá lhe interessar, ainda mais que é um pouquinho longo.

EU VIVI OS NOSTÁLGICOS ANOS 80!
 
 
     Nós somos, afinal das contas, um conjunto de experiências vividas. A famosa frase o “homem é o produto do meio” atribuída a Jean-Jacques Rousseau está envolta em muitas discussões relativas a dualidade da natureza do homem entre o bem e o mal. Mas não quero entrar neste assunto, até porque não tenho a expertise filosófica para tanto, apenas quero pegar emprestado a frase do famoso filósofo suíço para retirá-la daquele contexto e aplicá-la a este: nós somos, sem dúvida, o produto cultural das vivências da juventude.  
 
     Minha juventude (infância, adolescência e um pouquinho mais) se passaram nos anos 80!
 

     Quem viveu aquela época deve cada qual ter as suas histórias e preferências em relação a música, cinema,  literatura, programas de TV, vídeo games, os embalos de sábado à noite ou as tardes dançantes de domingo, ou seja, a cultura que temos hoje.
 

    Sob a perspectiva histórica, apregoam os especialistas no assunto, que o período dos anos 80 foi considerado como “a década perdida” por causa da estagnação financeira e os seus malogrados planos econômicos para conter a inflação que estourou na década seguinte.  
 

     Apesar disso, tive uma boa infância e não tenho do que reclamar.
 

     Egoísmo da minha parte? Talvez. Mas o fato é que, olhando para trás, compreendo que em meio àquela pobreza austera , com uma inflação corroendo o minguado ordenado do meu pai, servente de pedreiro, em que um litro de Coca-Cola na mesa aos domingos era uma ocasião especial e festiva, eu assistia satisfeito os seriados “O Túnel do Tempo”, “Perdidos no Espaço”, “Viagem ao fundo do mar”, lia os gibis do Tex e Zagor, escutava Boney M e Bee Gees, brincava de taco, biloquê, bolinha de gude e, com esses entretenimentos, era feliz ao meu modo.
 

     Lembro-me muito mais com nostalgia o período que compreende o fim dos anos 70 até meados de 80, um pouquinho mais. Foi bem aí, neste contexto que se consolidou em mim os motivos dos gracejos de minha filha, hoje, quase 40 anos depois, quando me pega a ouvir Milionário e José Rico, Trio Para Dura, Raul Seixas, Legião Urbana, Zé Ramalho, Michael Jackson, Dire Straits, todos embolados numa única playlist.

     Minha esposa diz que sou um cafona sem solução, eu prefiro me achar eclético, dói menos o ego pensar assim.
 

    Jamais fui apresentado a Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento, Elis Regina e aos cânones da MPB, não que eles não fossem bons, contudo não tive a oportunidade de ouvi-los na época certa. Tentei depois, já adulto, mas não consegui, e até hoje eles não me entram bem de jeito nenhum. Não os culpo e, de minha parte, sempre tiveram o meu mais profundo respeito como artistas consagrados que são, mas não caíram ao meu gosto naquele momento mágico, que de mágico nada tinha, no entanto, é assim que me recordo no presente.
 

    Para não incorrer em um texto demasiado longo, procurei sintetizar em uma semana simbólica toda a vivência daquele período envolvente que moldou o que sou hoje, culturalmente falando, é claro!
 
2ª FEIRA

 

     Na 2ª feira, já quase ao alvorecer do dia, meus pais acordavam cedo para o trabalho. Eles abandonaram a labuta sofrida da roça e, no embalo do êxodo rural dos anos 70, se meteram a vir à cidade com a cara, a coragem e de bicicleta, mas os hábitos das manhãs não mudaram.

    Às 5 da matina, meu pai ligava o velho rádio da família e sintonizava no programa do radialista Zé Bettio, lá com o seu famoso bordão “joga a água nele”, dona Maria. Em seguida, enquanto fumava o cigarro Arizona ou Continental, ficava ouvindo a moda caipira (Leo Canhoto e Robertinho, Tião Carreiro e Pardinho, Zilo e Zalo, Trio Parada Dura, e tantos outros). E eu, no meu quartinho perto da cozinha, ficava só de ouvidos, a meio sono, absorvendo toda aquela mescla boa de som de viola e cheiro do cigarro misturado com o café de coador de pano que a mãe fazia.
 

     Então, vem daí o meu gosto pelo modão sertanejo clássico que, de vez em quando, envergonha a minha filha se recebe amigos quando estou a bebericar minha cerveja ouvindo som lá na churrasqueira. Não dou a mínima. Os incomodados é que se retirem. Estou na minha casa, o som está baixo e não incomoda os vizinhos. O café ainda tomo com gosto. Graças a Deus, jamais botei cigarro de qualquer espécie na boca!
 

     Minha mãe não trabalhava fora, não porque tivesse preguiça, mas é que naquele tempo era a coisa mais normal deste mundo a mulher cuidar da casa. O asseio dos filhos e a educação na base de chineladas havaianas na bunda, quase todos os dias, fazia parte do encargo dela. Meu pai trabalhava de sol a sol como servente de pedreiro, lia pouco, porém versado na matemática básica de levantar paredes de tijolos. Nunca me bateu.
 

     Às sete, eu ia para a escola Gaspar da Costa Moraes, da rede pública estadual de Santa Catarina, de uniforme azul, cabelinho arrumado, calçando a conga ou kichute, dependendo do dia. Eu era bem feinho, magrinho, tímido e, pra piorar, usava óculos grande numa cara pequena.  Levava à escola, dentro de sacos pardos da padaria, porque nem lancheira eu tinha, fatias de pão de casa com Amendocrem, uma delícia. Na hora do recreio, se faltasse pão com Amendocrem, ainda podia filar na merenda a eterna bolacha doce Maria e o achocolatado Quick com sabor de morango, com um detalhe importante: tomado naqueles copinhos plásticos coloridos que já vinham com os canudinhos.

 
  

     A tarde era a hora dos gibis, pura felicidade. Meus pais não tinham dinheiro para me comprar gibis. Ganhava-os dos amigos vizinhos mais abastados. Eu tinha um enorme fascínio por histórias em quadrinhos, porque aquelas revistinhas me levavam a viajar a lugares distantes, faziam-me esquecer aquela minha realidade que, se não era sofrida, sobravam limitações. Lia-os até escondido no recreio, pois na escola eles não eram bem vistos pelas professoras de português.
 

     No entanto, a doação das revistinhas dos amigos não conseguia suprir a minha necessidade de querer ler mais. Por isso, saía à tarde e fazia uma verdadeira peregrinação por dezenas de outros colegas próximos ou distantes, tão ou mais pobres do que eu, para trocar os quadrinhos. Conheciam-me no bairro como o guri dos gibis. E havia uma negociação intensa pela raridade e números de folhas das revistinhas. Os Almanaques Disney, por exemplo, por serem grossos e de muitas histórias, representavam o suprassumo da negociação de sucesso.

 

 
     Eu lia de tudo, mas tinha preferência pelos fumettis italianos Tex, Zagor, Ken Parker e os de terror como Kripta, Calafrio, Spectro e congêneres. Advém deste contexto o meu gosto por Ficção Científica e Terror, temas recorrentes nesta modalidade de histórias em quadrinhos.  Saía de casa às duas da tarde com uma sacola plástica e só voltava às 6 horas para não perder Hora do Angelus, que a mãe obrigava eu e meus irmãos a ouvir no rádio. Ainda hoje leio Tex e Zagor no notebook na forma digital, pois é fácil de conseguir na Internet.

 
3ª FEIRA
 
    Na terça-feira eu adorava me entreter com os enlatados americanos dos anos 60 que pipocavam na televisão naquele tempo. Assistia a tudo com um fascínio enorme em um pequeno aparelho Philco preto e branco de 14 polegadas, um artigo de luxo porque televisão colorida, de verdade mesmo, sem as toscas telas de filtro multicor, só foi rolar em 1988 quando vi, pela primeira vez, Sylvester Stallone completamente colorido na pele do Rambo na estreia de Cinema em casa, no SBT.
 

     Atualmente, quando eu assisto no Youtube as maquetes destruídas pelo Ultraman, Spectreman, Robô Gigante, os monstros de borracha de Viagem ao Fundo do Mar ou os alienígenas cômicos de Perdidos no Espaço, eu fico admirado de como eu deixava-me facilmente seduzir pelos roteiros e cenários de todos aqueles programas de qualidade duvidosa, mas isso não me importava porque os via sob uma perspectiva de encantamento e fascinação que só a idade pode proporcionar. Onde havia defeitos, minha imaginação preenchia e tudo ficava bonito!
 

     Hoje, de vez em quando, me permito assistir alguns episódios do O Túnel do Tempo, Terra de Gigantes, Star Trek e, embora estas séries tenham envelhecido muito, ainda consigo vê-las com outros olhos, revestidos da condescendência do fã, é claro, porque o carinho ainda permanece. Não posso deixar de mencionar, também, as tardes chuvosas e frias que ficava assistindo o cachorro Rin Tin Tin, a Pantera Cor-de Rosa, Pica-pau, Papa-Légua, Scoob Doo, Corrida Maluca enquanto lá da cozinha vinha o inconfundível aroma aconchegante de café e bolinho de banana frito que somente a mãe sabia fazer.

 
 
     Na televisão ainda tínhamos, aos domingos, os saudosos Os Trapalhões, com o Didi (Renato Aragão) sempre levando a melhor em cima dos amigos, gostava demais da risada fina do Zacarias e a cara de assustado do Mussum. No sábado à tarde havia o Cassino do Chacrinha, do qual a gente se esbugalhava de olhar a Rita Cadillac e companhia com colãs ousadíssimos que se comparados às dançarinas do Faustão, estas são freiras de tão bem vestidas. A mulherada rebolativa do Velho Guerreiro servia até de inspiração pra certas safadeza a se praticar sozinho na adolescência.
 

     A novela Rock Santeiro, um marco da teledramaturgia, veio bem depois, em 85, com Dona Porcina e Sinhozinho Malta, embalado pela música do Zé Ramalho “mistérios da Meia-Noite, que voam longe, que você nunca, não sabe nunca, se vão, se ficam, quem vai, quem foi...” Rapaz, era uma coisa bonita de ouvir e ver! Meu gosto pelo Zé veio dessa música, de voz grave, das composições muitas vezes repletas de poesia ininteligíveis, mas sempre jogadas nos ouvidos da gente com aquele vozeirão inconfundível.

 
4ª FEIRA

 
     Na quarta-feira, na escola chegou uma notícia muito boa. No dia anterior a Seleção Brasileira de Zico, Falcão, Sócrates, Eder, Júnior, Cerezo e companhia (1982) havia perdido para Itália por 3 x 2. Eu ainda estava numa tristeza de dar dó. Tinha chorado muito. Então, surgiu um rumor de que o avião da seleção, em pleno voo de volta ao Brasil, fora chamado porque se descobriu uma irregularidade de um jogador italiano e isso desclassificaria a Itália. A melhor seleção de todos os tempos iria retornar para a copa! Minha alegria voltou. Será? No recreio não se falava de outra coisa. Duas horas depois, quando eu cheguei em casa correndo para ver os noticiários... hum, nem sequer tocaram no assunto. Descobri que era tudo fogo de palha, conversa pra boi dormir do pessoal da região. Uma pena. Realmente uma pena.

 
5ª FEIRA
 
     Na quinta, meu pai comprou uma vitrolinha Philips daquelas bem vagabundas (imagem acima), ao estilo maleta de viagem, porque o orçamento não permitia um aparelho de som Gradiente top de linha da época. Os discos de Milionários e José Rico, Chitãozinho e Xororó, João Mineiro e Marciano, Perla, Amado Batista, Carlos Alexandre, que os meu pais ouviam todos os dias, começaram a me chatear e, benza deus, a língua não tem osso mesmo, me envergonhar na frente dos amigos. É verdade! Por isso não recrimino minha filha não. Pensem, todos os vizinhos e amigos ouvindo Michael Jackson e Cyndi Lauper, que eu estimava de paixão e, lá em casa, rodava “pela looonga estrada da vida, vou correndo e não posso paraaa..”. Gostava deles, dos sertanejos, porém já estava na hora de virar o vinil. Então, fiz chantagem emocional com o meu pai e consegui arrancar dele alguns discos como estes das imagens abaixo.
 

 

 
 
6ª FEIRA

     Na sexta-feira eu ia jogar bola na rua na frente da nossa casa. Naquele tempo dava para fazer isso. Brincávamos de bilboquê, bolinha de gude na boca, carrinho de rolimã, pião na roda (dentro de um círculo você, com o seu, tentava bicar os piões girando dos amigos com a intenção de ver se os tirava de lá), soltávamos pipa e o maior divertimento de todos: o jogo de Taco (Bets), uma espécie de baseball americano adaptado sem o recebedor. Eu adorava jogar taco, contudo o medo de espirrar a bola na vidraça dos vizinhos era grande também. Quando acontecia, a vítima ao botar a cara na janela a fim de reclamar o prejuízo só via os tacos e as casinhas de palitos no meio da rua. E cadê todo mundo?
 
     À noite, sentando no muro da minha casa, eu ficava olhando solitário o céu cheio de estrelas tentando avistar um traçado luminoso. Os noticiários diziam tratar-se do cometa Halley, mas o tal não passava de um rabisco fraquinho, ele não era aquilo tudo não! Mesmo assim, eu ficava observando e refletindo: poxa, quando ele passar por aqui de novo eu provavelmente já vou estar morto, ou mijando no pé de tão velho. Intrigava-me os cientistas saberem aquilo tudo. Pensava lá com os meus botões: será que eu estarei vivo em 2061?
 
 
SÁBADO
 
     No sábado era dia de ir ao cinema, no entanto, só assistia filmes que estouravam na mídia e causavam grande repercussão porque não tinha dinheiro para ir todo fim de semana. O meu primeiro filme foi aos 13, 14 anos: Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida.

     Depois de ver aquela enorme tela, som alto quase a doer os ouvidos, uma gritaria, um bater de palmas, um bater de pés porque o Harrison Ford estava se arrastando e avançando por debaixo de um carro em movimento para subir do outro lado e tirar o motorista nazista do volante, a Philco de 14 polegada nunca mais foi a mesma dentro da minha percepção do verdadeiro entretenimento de ver filmes. Quase deixei o queixo caído dentro do cinema. Era outro mundo!

     Depois do primeiro impacto do Indiana Jones não pensem que o deslumbramento passou. Que Nada! ET, o Extrarrestre me fez, pela primeira vez, chorar dentro da sala escura. Na hora de ir embora, tinha gente com irritação no olho. A desculpa era cuspida na maior cara-de-pau: muita poeira dentro do cinema!

     Tive a oportunidade de assistir aos grandes filmes do anos 80: Star Wars e o terrível Darth Vader em O Império Contra-Ataca e O Retorno do Jedi. Sempre com o dinheiro economizado a duras penas me encantei com O Exterminador do Futuro, Aliens 2 - O Resgate, O Enigma de Outro Mundo, Indiana Jones e o Tempo da Perdição, Os Goonies e tanto outros. Inesquecível o ambiente em torno destas produções cinematográficas. 

 

     Apreciava tanto ler gibis e ver filmes na TV e cinema que até nem dava muita bola para um monte de gente saindo às ruas com as caras pintadas de verde e amarelo gritando “Diretas já, diretas já”. Até deu certo, porém o Tancredo morreu antes de assumir a presidência. Chegaram a dizer que os militares tinham dado um “jeitinho” no coitado. Era gente sem noção mesmo!
 
   
DOMINGO
 

     Ahhhh, o domingo! Dia de se preparar para o grande evento da semana: ir dançar no Clube Recreativo e Cultural da Fazenda no finalzinho da tarde, com suas luzes de neon e o estonteante globo de luzes coloridas em movimento. Este acontecimento social tão esperado mereceria uma redação própria por sua importância e magnitude, sob o meu ponto-de-vista, é claro.

    O som alto, o ambiente, os amigos, as coreografias cafonas, as bebidas coloridas, os amassos no cantinho do salão, os flertes com as meninas (raramente correspondidos), o passa-fora na hora da música lenta, os beijos na hora da música lenta, o medo de apanhar na saída (se cantasse a garota errada), os desafios de beber vodca forte em goles grandes sem tossir, o ritmo da pista e, finalmente, o melhor de tudo: as músicas dançantes dos anos 80, que hoje costumam chamar de flashback.
     
     É como costumo falar: recordar é viver e eu vivi os anos 80!







 
Peço desculpas por publicar este texto aqui no bloco de contos, uma vez que não se trata disso. Está mais para uma crônica. Mas é de meu gosto deixar todos os meus escritos em um único lugar. 
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 17/09/2020
Reeditado em 14/10/2020
Código do texto: T7065506
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