(Des)Humanidades

*Por Herick Limoni

Acordei com o sol da tarde queimando meu rosto. O relógio marcava exatamente 13h e 17min. Meu voo de volta ao Rio de Janeiro estava marcado para as 17h e 30min. Ainda tinha tempo suficiente para tomar um bom banho, almoçar ainda no hotel e chegar com tranquilidade ao aeroporto. Em razão da bebedeira da noite anterior, não me recordava de muita coisa. Mas o comprovante do cartão repousava solenemente ao lado da minha carteira, na cabeceira esquerda da cama, e os números ali impressos chamaram minha atenção como a um farol para o marinheiro em noites de nevoeiro: R$ 17.666,00. Esse foi o valor gasto em uma noite de bebidas, comidas e mulheres. Isso mesmo, tudo no plural. Era um valor exorbitante, admito. Nunca havia gastado tanto. Mas para um novato que havia acabado de ganhar, em sua primeira negociação, dois milhões de reais, livres de impostos, não chegava a ser um absurdo. Mas era. Confesso que por alguns instantes, ao relembrar do valor gasto, senti-me envergonhado. O fato de a grande maioria da população do meu país não ganhar sequer esse valor em um ano me deixou constrangido. Mas o que se há de fazer? O dinheiro nos proporciona esses pequenos prazeres.

Dirigi-me para o banheiro e tomei um banho relaxante e demorado. O restaurante funcionava até as 15h 00min e eu tinha tempo suficiente. Durante o banho, fragmentos da noite anterior vieram-me à mente. Lembro-me das diversas garrafas de uísque e champanhe. Lembro-me dos deliciosos e variados petiscos. Lembro-me do ambiente aconchegante da boate, com suas luzes de neon e sofás de veludo na cor carmim. Lembro-me de algumas das muitas pessoas que lá estavam, assim como eu, a satisfazer seus desejos e gastando vultosas somas em dinheiro. Recordo-me das belas mulheres que lá trabalhavam. Mulheres que foram um capítulo à parte na minha noite de esbórnia e lascívia. Se não me falha a memória, subi para o andar superior, onde ficavam os quartos, com três belas mulheres, duas louras e uma morena. Todas belíssimas e com idades não superior a 25 anos. Lembro-me da feição de inveja que vi no rosto de alguns dos frequentadores enquanto subia as escadas rumo ao paraíso. Não me lembro se fodi todas. Creio que não. Talvez nenhuma, em razão do meu estado de exagerada embriaguez. Lembrei-me de que havia, como em muitas outras ocasiões, mentido para minha esposa dizendo que viajaria por questões de trabalho. Sorri. Ela nunca desconfiara de nada, ou pelo menos nunca demonstrara desconfiança. Era uma ótima esposa, em todos os sentidos, inclusive pelo fato de nunca desconfiar do marido fiel. Terminei o banho. Vesti-me e desci ao restaurante. Almocei salmão com molho de alcaparras. Não estava muito bom. Talvez o gosto de guarda-chuva na boca em razão da ressaca tenha influenciado meu paladar. Desloquei-me à recepção, encerrei minha conta e solicitei que me chamassem um táxi. Depois de alguns poucos minutos, o táxi chegou.

O motorista do táxi era um senhor de aproximadamente 60 anos, cujos cabelos começavam a demonstrar, pela falta de melanina, a longa jornada já percorrida. Chamava-se Osvaldo. Simpático, contou-me que trabalhava desde os treze anos de idade, e que quando começou na profissão de taxista, ainda eram conhecidos como chofer. Ressaltou que apesar de nunca ter ficado sem emprego, até aquele dia ainda não havia conseguido se aposentar. Ademais, dizia ele, ainda que estivesse aposentado teria de continuar trabalhando, pois a aposentadoria não seria suficiente para sustentar a mulher, uma filha, dois netos e os pais, pois todos dependiam economicamente dele. Com certa revolta lembrou da recente reforma da previdência, que lhe obrigaria a trabalhar mais sete anos até completar o tempo necessário para a aposentadoria. Iria, segundo ele, aposentar-se perto da morte, se é que fosse viver até lá. Novamente senti-me constrangido e envergonhado pela situação daquele trabalhador. Enquanto ele lutava para sobreviver, eu gastava uma pequena fortuna em prazeres efêmeros. Chegamos ao aeroporto às 15h e 50min. A corrida ficou em R$ 23,00. Dei-lhe uma nota de R$ 100,00 e disse que ficasse com o troco. Agradeceu-me efusivamente. Era uma maneira de eu me retratar com ele e diminuir um pouco da minha vergonha. Senti-me pouco aliviado.

Como havia realizado o check in pela internet, o procedimento no aeroporto foi bastante rápido e logo estava já no interior da aeronave. Seriam pouco menos de duas horas de voo até o Rio de Janeiro. Apesar de ter acordado tarde, encontrava-me sonolento. Aconcheguei-me cuidadosamente na minha poltrona e antes do avião decolar já estava dormindo o sono dos justos, um sono tranquilo que há muito não tinha (tenho pra mim que a boa ação com o taxista foi a responsável por isso). A aeronave aterrissou no Santos Dumont às 18h e 53min. Foi uma viagem bastante tranquila e agradável. Assim que pousamos telefonei para minha esposa Sandra, que ficou de me buscar. Como morávamos próximo, em menos de 15 minutos ela chegaria. Seria o tempo de desembarcar e retirar a bagagem. Quando nos encontramos, beijei-a ternamente, como sempre faço quando retorno de minhas viagens. No caminho para casa ela me contou o que havia feito naqueles dois dias em que fiquei fora. Disse-me que o nosso casal de gêmeos (Emily e Matheus), de três anos, estava com muitas saudades minhas, assim como ela. Disse-lhe que também estava com muitas saudades, e que os abraçaria tão logo chegássemos. No caminho, por um erro de planejamento, fomos surpreendidos por um daqueles enormes blocos pré-carnavalescos na orla de Copacabana. Resultado: demoramos mais de duas horas para conseguir chegar em casa, e quando lá chegamos, as crianças já estavam dormindo. A saudade perduraria por mais algumas horas.

Na manhã seguinte fui acordado com os gêmeos pulando sobre mim na cama. Era uma sensação indescritível acordar com aqueles dois anjinhos me abraçando, beijando-me e dizendo que estavam com saudades. Passamos a manhã toda juntos, à beira da piscina. Fazia um calor de 33 graus. Como não iria mais trabalhar naquela semana, teria tempo de sobra para curtir a família e matar a saudade. Tão logo almoçamos, as crianças foram dormir, como faziam habitualmente. Eu e Sandra fomos para a sala de TV. O jornal noticiava que a pandemia na Ásia já havia levado à morte milhares de pessoas, e que o vírus começava a se espalhar para alguns países da Europa. Apesar do pânico inicial, tranquilizei-me ao ouvir a opinião de especialistas brasileiros que diziam que não precisávamos nos preocupar, pois aquele tipo de vírus somente se propagava em ambientes frios, o que não era o caso do Brasil e muito menos do Rio de Janeiro. Cochilamos os dois no sofá, aliviados. Era início do mês de janeiro.

Passados alguns dias, com a pandemia já espalhada por quase toda a Europa e alguns países do continente africano, recebi, com certa apreensão, a notícia de que se havia confirmado o primeiro caso de infecção no país. Foi no mês de fevereiro. Apesar disso, tranquilizei-me novamente quando os especialistas, em razão da proximidade com os festejos carnavalescos, disseram que não havia motivo para alarde, e que, de igual maneira, não havia motivos para que se deixasse de brincar o carnaval, a maior festa popular brasileira. Seria de fato uma pena caso os eventos fossem cancelados, pois àquela altura os hotéis da cidade já estavam com quase 100% de ocupação, e a cidade já tomava ares de torre de babel, tamanha era a profusão de idiomas que se ouvia pelas ruas. Ou seja, estava tudo dentro da rotina. Alguns dias se passaram e o carnaval chegou. Como não sou adepto do festejo, fui com a família para a fazenda de um amigo no interior do estado.

Após a euforia do carnaval as notícias não eram nada boas. O vírus começava a se espalhar por outros estados e as primeiras mortes já ocorriam. Seguia ainda aliviado porque os especialistas garantiam que o grupo de risco se restringia a idosos e pessoas com algum tipo de comorbidade, ainda que os entendidos estivessem tateando no escuro em termos de pandemia. Como eu, esposa e filhos somos jovens e saudáveis, continuei tranquilo com relação a isso, logicamente seguindo as orientações de prevenção emanadas pelas autoridades sanitárias. Já estávamos no mês de março e diversos estados e municípios começaram a decretar situação de emergência, campo fértil para políticos e gestores inescrupulosos gastarem o dinheiro público sem restrições. Apesar das orientações e de estar trabalhando de casa para evitar aglomerações, fui convocado a uma reunião de negócios, da qual não poderia faltar. Desloquei-me então até o centro da cidade, local da reunião, e após quase três horas de intensas e exaustivas negociações envolvendo a compra de equipamentos médicos para o município, o martelo foi finalmente batido. Tal negociação me rendeu, a título de comissão, quatro milhões de reais. Nada mau para alguém que estava começando a trilhar o caminho das grandes e milionárias transações.

Pouco tempo depois a situação fugia ao controle. O país já apresentava milhões de infectados e milhares de mortos. O Rio de Janeiro estava um caos. A taxa de ocupação dos leitos estava no limite e não demorou para que a rede estivesse com 100% de ocupação, incluindo alguns hospitais de campanha que foram erguidos para tal finalidade. Pessoas morriam, às dezenas, nas portas dos hospitais e postos de saúde. Apesar de estarem com fluxo maior do que o normal, os hospitais e clínicas particulares estavam com a situação controlada, fato que me deixava bastante aliviado naquele momento de desespero, dor e sofrimento. Permaneci assim, tranquilo, até que o governo estadual, por meio de um decreto, assumiu o controle de todos os hospitais privados. A partir daquele momento caberia aos gestores do governo definir quem seria internado ou não. Seria uma espécie de escolha de Sofia. Minha tranquilidade ia pouco a pouco se esvaindo. Agarrava-me agora, conforme informação repassada pelos especialistas, no fato de que nem eu, tampouco minha família, fazíamos parte do grupo de risco. Maldita hora em que me enganei.

No final do mês de maio, apesar de estarmos em isolamento desde o final do mês de março (eu estava trabalhando remotamente, e minha esposa não trabalhava), meus dois filhos começaram a apresentar sintomas de gripe, como febre e coriza. Já no início fiquei bastante preocupado, ainda que eles, com apenas três anos de idade, estivessem longe de pertencer ao grupo de risco. A preocupação virou desespero, quando dois dias depois o diagnóstico do teste resultou positivo. Liguei para nosso médico de confiança e a recomendação foi de internação imediata, haja vista que a infecção dos gêmeos fugia muito ao perfil até então estabelecido. Pegamos as chaves do carro, as máscaras e partimos imediatamente em direção ao hospital conveniado mais próximo. O relógio marcava 16h e 57min. Quando lá chegamos, deparamo-nos com uma multidão de pessoas em frente ao nosocômio. Deixei mulher e filhos no carro e, protegido pela máscara, desci para tentar saber o que ocorria. A essa altura, meus filhos já estavam com bastante dificuldade para respirar. Com muita, mas muita dificuldade, tal qual um guerreiro de era medieval num campo de batalha, consegui abrir caminho em meio àquela turba e chegar próximo à portaria, onde fui informado de que não havia vaga. Os leitos que, até então, encontravam-se vazios, foram ocupados por pessoas que sequer tinham plano de saúde. E isso era inaceitável. Enquanto meus filhos, que sempre tiveram plano de saúde penavam com a falta de ar, sem conseguir ser atendidos, outras pessoas, que deveriam estar no SUS, ocupavam as vagas que deveriam ser, por direito, dos gêmeos.

Bastante desolado com a situação, mas sem coragem de retornar ao carro e contar a má notícia para a minha esposa, que naquela altura se agarrava a tudo em prol do restabelecimento da saúde dos filhos, comecei a realizar algumas ligações telefônicas, a fim de que, usando de minha influência, pudesse, enfim, conseguir um lugar para internar meus filhos. Depois de muita insistência consegui falar com o secretário de saúde municipal – o qual conhecia em razão da última negociação de equipamentos médicos – que ficou de verificar a situação e me retornar tão logo encontrasse duas vagas disponíveis. Passaram-se longas duas horas até que, finalmente, ele retornou a ligação, direcionando-me para o Hospital Municipal Lourenço Jorge, que fica na Barra da Tijuca. A equipe médica, ciente da situação, já estaria esperando. Assim que chegamos, fomos imediatamente atendidos pela equipe, cujos médicos e enfermeiros, apesar da confusão em que o local se encontrava, rapidamente levaram meus filhos para a ala de internação. Eram 19h e 30min. Após nossa chegada e internação dos gêmeos, ficamos, eu e Sandra, assentados no chão do corredor, ansiosos à espera de alguma notícia. Não há nada mais angustiante que uma situação como essa. Passaram-se aproximadamente 50 minutos quando um dos médicos que os atendeu retornou. Pelo seu semblante pressenti que algo havia acontecido. Sem delongas e sem rodeios, disse-nos que ambos os filhos não haviam resistido, pois não havia respiradores suficientes para atendê-los. Desmaiei.

Recobrei a consciência após alguns minutos, os quais pareceram uma eternidade. Minha esposa, como era de se esperar, estava desesperada, em prantos, apesar de não haver desmaiado (era ela muito mais forte do que eu). Passado algum tempo, ainda no hospital, contei-lhe algo que ainda não lhe havia dito: que os últimos quatro milhões que havia ganhado eram provenientes de uma negociata para aquisição, pelo governo estadual, de uma remessa de respiradores, altamente superfaturados, que seriam destinados às vítimas da pandemia. Após o choque inicial de Sandra, disse-lhe que estava mortalmente arrependido, e que daria tudo para ter a chance de voltar atrás. À tristeza de Sandra pela perda dos nossos filhos somou-se, a partir de minha confissão, mágoa e ódio. Como poderia eu ter feito aquilo? Como tive a coragem de fazer isso nesse momento tão crítico? Eram suas indagações. Ela, a partir de então, passou a culpar-me pela morte dos gêmeos. Não sem razão. Transtornada de ira, dizia que Deus nos estava castigando pelas minhas ações, mas que ela não merecia aquilo. Naquela noite, ela não voltou pra casa comigo. Depois de 16 anos juntos, abandonou-me sem pestanejar. No seu estado de fera ferida, foi para a imprensa e divulgou o que eu lhe havia contado. Em pouco tempo, as investigações policiais chegaram à verdade que eu já sabia e lhe tinha confidenciado naquele momento de dor.

Poucos meses depois da perda de meus filhos e de minha esposa, perdi o meu mandato de deputado federal após um rápido processo de impeachment, e, ao final, ainda perdi a minha liberdade. Hoje, encontro-me recolhido no pavilhão 8, do presídio de Bangu, onde estão presas outras celebridades do mundo político. Estou pobre e só. E depois de tudo que me foi tirado, ainda perdi a minha dignidade.

*Bacharel e Mestre em Administração de Empresas.

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