MEMÓRIAS DE UMA QUARENTENA

E a única neta que não fazia nada foi designada em reunião de família realizada por videoconferência, sem sua presença,  a ficar responsável pela  avó quarentenada.

A intimada, então, foi morar com a vó. Saía uma vez por semana pra comprar comida e outros itens de necessidade básica vestida como uma astronauta e já no portão, quando voltava, arrancava a parafernália, lavava e pendurava e depois guardava. 

E a avó se cansou de ficar presa, era velha, mas não era moleza.

Se recusava a ficar o tempo todo trancada.

A neta que não fazia nada convenceu a avó, pela décima vez, que o melhor era ficar em casa e pra recompensá-la comprou linhas e agulhas pro crochê ou ponto-cruz.

Porém, os olhinhos da avó tomados de cataratas que não podiam ser operadas, não enxergavam quase nada e a tentativa de bordado remetia a tristeza há tempos guardada.

Então, a neta que não fazia nada guardou as agulhas e linhas. A avó queria guardar as lágrimas, mas não podia. Os olhinhos meio azuis, meio cinzas choviam bicas.

Pra amenizar, às tardes, a neta que não fazia nada começou a ler livros pra ela, mas a avó dormia assim que a leitura começava e reclamava que passava a noite toda acordada.

A neta que não fazia nada mudou a estratégia. Só lia à noite e a avó, cada vez ficava mais desperta, interrompia a leitura e contava histórias dela. Sobre os tempos de capina com o pai na roça, sobre as entidades cor de sol que corriam atrás deles no caminho de volta.

E a neta escritora que, para a família, não fazia nada, finalmente, descobriu de quem havia herdado o dom da contação de histórias. Pediu a avó que lhe ajudasse, iria escrever um livro de memórias. 

Lilian S Gonçalves
Enviado por Lilian S Gonçalves em 08/10/2020
Reeditado em 28/02/2023
Código do texto: T7082594
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