As causas nobres do Dr. Alfredo

Mal o despertador tocava às 6:30 e Alfredo já estava de pé. Tomava banho, preparava o seu café e comia... Sozinho. A dedicação ao ofício fez com que não percebesse a vida passando e acabou solteiro, sem filhos e aos 60 anos, fazia da mesma forma que quando tinha 25: colocava seu terno surrado, o sapato -que já pedia por descanso- e saia pra batalha.

Era comovente à sua dedicação ao trabalho e a forma que abraçava a causa dos mais necessitados. Nada podia parar o valente advogado quando ele mergulhava no que estava defendendo e- como só trabalhava nas causas em que acreditava- seu ofício era movido pela paixão. Na sua cabeça inexistiam inimigos que não pudessem ser enfrentados, fossem eles bandidos, policiais ou agentes públicos corruptos, inclusive juízes e desembargadores.

Tinha predileção pelas lides contra os poderosos. Grandes corporações, o Estado, bancos, sentia um prazer quase que sexual ao desfazer as injustiças quando litigava contra aqueles que considerava como grandes inimigos do povo. Certa vez comprou briga com os milicianos da zona oeste do Rio de Janeiro, para defender umas famílias que estavam sendo expulsas da localidade pelos criminosos.

Ficou com a cabeça a prêmio, como era de se esperar, mas nem isso o fez parar. Dizia sempre:

-Aquele que se cala perante uma injustiça, se torna cúmplice dela!

Era famoso nos corredores do tribunal, tanto pela sua incontestável competência, como pelo enorme bigode que ostentava. Nas audiências e sessões estava sempre afiado, com o processo decorado de ponta a ponta. Sabia onde estava cada documento e memorizava todos as petições, inclusive da parte contrária. Além disso, era um fenômeno nos debates orais!

Certo dia patrocinava uma causa de um cidadão que estava sofrendo uma reintegração de posse movida pelo estado, sob a alegação de que o mesmo havia invadido o imóvel, entetanto, a família do réu ali residia por mais de 50 anos. Nunca esqueci as palavras proferidas pelo nobre jurista no momento de suas alegações finais, naquela tarde de outono:

“O direito à moradia é um dever que deveria ser garantido pelo estado. Mas no presente caso, o mesmo estado que deveria garantir uma casa adequada para todos os cidadãos, além de não o fazer, se comporta como o esbulhador. Como aquele que quer colocar para fora uma família e deixá-la sem teto, a mercê das intempéries das calçadas!”

A sentença foi procedente, mais uma pra vasta coleção de Dr. Alfredo, e a família garantiu o direito de permanecer no imóvel, para inconformismo do procurador do estado que atuava no processo. Outra memorável atuação do doutor, foi quando defendeu uma colônia de pescadores artesanais contra uma multinacional do petróleo, que havia poluído os mares da região.

No dia da audiência compareceu de terno verde e gravata amarela, representando as cores do Brasil, numa mensagem subliminar para todos que acompanhavam o embate. Saiu vencedor mais uma vez, conseguindo a indenização para os pescadores.

Numa outra ocasião, foi desrespeitado pela juíza, que o considerou petulante, justamente por que conhecia cada folha do processo. A cada pergunta da juíza sobre determinado assunto, ele tinha a resposta na ponta da língua, inclusive quando a questão era dirigida para o advogado da parte contrária ou para o secretário da audiência. Apesar dos maus tratos, não se abalou e cumpriu seu ofício com o comprometimento que lhe era peculiar.

Só vi Dr. Alfredo perder as estribeiras quando certa vez foi acusado pela parte contrária de estar orientando a testemunha a mentir. Ficou tão indignado que pediu a juíza que este disparate constasse em ata para que pudesse posteriormente tomar as medidas cabíveis para limpar a sua honra.

-Excelência, com a devida venia, peço que conste em ata a alegação do meu ex adversus (advogado da outra parte), para que eu possa, no momento adequado, buscar a devida reparação.

O acusador ficou tão assustado com a reação do honrado causídico, que retirou as palavras levianas que havia dito. O ofendido Dr. Alfredo somente se acalmou mediante um pedido de desculpas, numa habilidosa condução do juiz que presidia a audiência.

Como nem só de vitórias vive o advogado, Dr. Alfredo também era nobre nas derrotas. Sabia reconhecer quando estava sendo vencido e principalmente, uma boa atuação do colega adversário. Como costumava dizer:

-Não gosto de perder, mas sei reconhecer quando os argumentos da parte contrária são superiores!

Apesar da fama de desonestos dos advogados, Dr. Alfredo era unanime entre todos que o conheceram. Seu caráter não admitia dúvidas e sua postura era irretocável no dia a dia de sua militância. Aos 85 anos se aposentou, contrariado, em razão das dificuldades que a idade lhe trouxe, e foi morar num asilo. Se orgulhava de em mais de 60 anos de carreira nunca ter respondido a um processo disciplinar no tribunal de ética da Ordem dos Advogados e quando formalizou sua jubilação recusou prêmios e honrarias dirigidas a sua pessoa pelas mais diversas instituições que representavam a classe.

Faleceu em junho de 2015 e segundo testemunhas, na véspera do fatídico dia, orientava seus colegas de repouso para que buscassem a correção de seus benefícios junto à Previdência Social.

*Este conto é uma obra de ficção, inspirado em fatos reais de diversos grandes advogados que conheci. Uma singela homenagem a essa profissão tão bonita, que exerço com paixão, e aos colegas batalhadores do direito, que muitas vezes não são devidamente reconhecidos pela sociedade.