O Mentiroso

- Foi o que aconteceu - esbravejou Rodolfo, visivelmente irritado.

- Não foi, não, Rodolfo - retrucou Renato. - Lembra-se do que você contou para todo mundo?

- Contei o que aconteceu.

- Você contou uma história bem conveniente.

- O que você está querendo me dizer?!

- Que você mentiu.

- Menti?!

- Mentiu.

- Não menti.

- Mentiu. Você mentiu.

- Menti?! Lembro-me, e muito bem, do que eu fiz e disse. Não menti.

- Mentiu. Você é um mentiroso profissional. Você contou mais uma das suas infinitas mentiras.

- Você me ofende. Que outras mentiras contei?!

- Que outras mentiras!? Ora, Rodolfo. Perdi a conta de quantas mentiras você já contou. Perdi a conta. Você mente, e mente, e mente, e mente... E mente. Até a respeito do seu nome você mente.

- Quê!?

- Para a Lucinha você disse chamar-se Leandro; para a Mariângela, Luciano; para a Gorete, Vinicius. E mentiu sobre os seus pais e a respeito da cidade em que nasceu...

- Não acredito no que você me diz.

- Se você acredita ou não, o que você fez já está feito, e não vai fazer com que você deixe de ser o mentiroso que você é, e as pessoas não deixarão de saber que você é um mentiroso incorrigível. Todos sabemos que você nada mais é do que um mentiroso. Sorte sua que hoje em dia não há um Gepeto perambulando por aí.

- Quem é Gepeto?

- Você nunca ouviu falar do Collodi?

- Não.

- E do Pinóquio?

- Já. Quem nunca ouviu falar dele?! O que o Pinóquio tem a ver com o tal de Gepeto e com o tal do outro que você mencionou?

- Collodi é o autor do livro que conta a estória do Pinóquio e Gepeto é o personagem que, na estória, dá vida ao Pinóquio.

- E o que os três têm a ver com o que aconteceu ontem?

- Para certas coisas você é esperto, esperto até demais; para outras, asnaticamente burro.

- Você me ofende.

- Se eu digo que não existe nenhum Gepeto por aí e que ele deu vida ao Pinóquio, o que você entende?

- É uma indireta?

- Enfim, você despertou de um sono profundo.

- Você está me dizendo que eu sou tão mentiroso quanto o Pinóquio?!

- Não. Estou dizendo que você é mais mentiroso do que ele. Muito mais.

- Grande amigo você é.

- Já livrei você de muitas enrascadas nas quais você se enroscou por causa das suas mentiras. Desta vez, você que se entenda com a Adriana. Eu não direi para ela que eu e você fomos, ontem, ao campo de futebol.

- Mas você e eu fomos ao campo de futebol.

- O quê!? Onde você está com a cabeça!?

- Não fomos ao campo de futebol, ontem, não?!

- O quê!? Do que você está falando? Não fomos ao campo de futebol, ontem. Eu e a Andressa fomos ao cinema. E você e a Beatriz, ao motel.

- Não fui ao motel.

- Foi.

- Não fui.

- Pois eu digo que foi. E digo com todas as letras: Você traiu a Adriana. E não foi a primeira vez. E não será a última, com certeza. Faça-me um favor, Rodolfo: Não me envolva mais em seus problemas. Eu vou embora.

- Espere um pouco, Renato. Não me deixe na mão. Estou confuso. Não me lembro de ter ido com a Beatriz ao motel. Que Beatriz!? E eu traí a Adriana!? Eu sou incapaz de traí-la. Eu, trair a minha cara-metade!? Jamais! Traição é crime imperdoável. Eu amo a Adriana. Ela é a paixão da minha vida. Meu docinho de coco. Casei-me com ela porque eu a amo. Sou incapaz, incapaz, entendeu!? de traí-la. Eu e você fomos, ontem, ao campo de futebol. Eu sei que fomos ao campo de futebol, Renato. Eu sei.

- Com toda a sinceridade, Rodolfo: Você está muito estranho ultimamente. Até você acredita nas suas mentiras. É o cúmulo dos absurdos.

*

Uma semana depois:

Casa de Rodolfo e Adriana.

Domingo.

Uma e quarenta e cinco da madrugada.

À escuridão da sala, Adriana, sentada no confortável sofá, trajando, unicamente, uma camisola; com as pernas cruzadas, a direita por sobre a esquerda, movia o pé direito - percebia-se-lhe sinais de irritação e impaciência; semi-adormecida, quase sucumbindo ao sono, aguardava Rodolfo.

E Rodolfo entrou em sua casa. Seus passos, lentos, cuidadosos, silenciosos.

- Por que você demorou tanto, querido? - perguntou-lhe Adriana assim que ele, ao apertar o interruptor, acendeu as duas lâmpadas da sala.

- Querida. O que você faz, aqui, no escuro?! Por que você está, aqui, no escuro?! E de camisola?!

- Eu estava esperando você.

- Esperando-me!?

- Sim. Eu estava esperando você. Você demorou. Faz tempo que estou esperando você.

- Desculpe-me, querida. Você sabe como é a minha vida atribulada. Nos finais de semana, eu vou, você sabe, com os amigos jogar futebol no campo de futebol perto da cada do Renato, ou no perto da casa do pai dele, ou no perto da Igreja São Benedito.

- Querido...

- O Renato convidou-me para ir lá, hoje, jogar uma pelada e beber umas loiras geladas. Fui. E não vi a hora passar. Desculpe-me. Peço desculpas, Adriana. A hora passou. Nossa! Duas horas! Já!? Pelo amor de Deus! Como o tempo passa depressa!

- Querido...

- E eu pensando que eram, ainda, umas dez da noite, e nem um segundo a mais. E já são duas da madrugada! Pelo amor de Deus! O que aconteceu com os ponteiros do relógio!? Como o tempo passa depressa! Nossa Senhora! E eu pensando que era cedo ainda. Modo de falar, né, querida. Força de expressão. Eu não imaginei que fiquei tanto tempo lá no campo, com o Renato, o Vinicius, o Pedro, o Carlos, o Ricardo, o Paulo, o Roberto, e outros camaradas meus, jogando futebol, desde... Desde que horas? Desde às seis... desde às cinco... Não me recordo. Depois de um dia de trabalho cansativo, muito cansativo, você sabe, né, querida! preciso de uma partidinha de futebol com os amigos, para espairecer, queimar as calorias, gastar as energias, e renovar as energias, gastando-as. É um paradoxo. Um paradoxo. Gasta-se energia, para renová-la.

- Querido, do que você está falando?! Assim que chegamos, eu da casa de mamãe e você da casa de seu irmão, principiamos conversa, que os latidos do Golias interromperam. E você foi ao quintal saber porque o Golias latia tanto, e eu fui banhar-me. E assim que saí do banho, sentei-me, aqui, e fiquei à sua espera. E já faz quase duas horas que você foi ao quintal. Por que você demorou tanto tempo?! Por que o Golias latia tanto? E que história é essa de terem ido jogar futebol você, o Renato, o Vinicius, o Pedro, o Roberto?! Você não saiu daqui de casa depois que regressamos, você, da casa de seu irmão, eu, da de mamãe.

- Golias!? Latidos!? Mamãe!? Meu irmão!? Querida, eu vim do campo de futebol, não vim!?

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 05/12/2020
Código do texto: T7128297
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