UM NATAL DIFERENTE.

Marcelo deixou o corpo cair no sofá. Fechou o notebook com raiva. Passou as mãos no rosto. Chutou os jornais sobre a mesa de centro. Um último gole no whisky com gelo. Jogou a bituca do cigarro em direção da sacada do apartamento. O poodle latiu. -"Sei que está errado, Goku. Vou recolher a bituca depois!" Conversou com o pet. As mensagens no celular, os grupos de whatsapp da família e do trabalho. As mensagens da namorada, que morava em outra cidade. -"Preciso de férias, urgente. Camboriú, Ubatuba, Maragogi." O ombro doeu ao se levantar. Um sedentário quarentão, avesso a academia. A chuva começou a cair. Manhã de sábado de dezembro. -"Chovendo, Goku. Esqueça a caminhada!" Falou com o cachorro, de olho na rua. Marcelo fechou a sacada, depois de colocar a orquídea pra fora. Um suspiro. Lembrou de quando escalou o monte Kilimanjaro, na África, com o amigo Carlos. Ano de 2004. Tinha vinte anos quando aceitou o convite do amigo alpinista. Correu para o quarto e abriu as gavetas da cômoda. Os álbuns de fotografias. Há anos não olhava aquelas fotos antigas. -"Puxa. Que viagem maravilhosa! Paisagens de tirar o fôlego. Tenho que postar essas fotos no face." Ria sozinho, enquanto via as fotografias. Fotos da primeira casa da família, a sua primeira bicicleta, as pescarias em família, a formatura da escola, o gesso no braço quebrado ao cair da goiabeira, a turma dos escoteiros, uma foto com Sandy e Junior, fotos da turma no festival Lollapalooza, a primeira tatuagem, os trotes na faculdade, a primeira vez no Morumbi, a rara oportunidade de ver um jogo de futebol da copa de 2014 no Brasil. Fotografias de antigos natais. Uma lágrima molhou o álbum. A foto dos pais numa grande mesa no quintal. O avô, Genaro, com uma bandeja de maionese nas mãos e um sorriso adorável no rosto. O garoto Marcelo, só de calção vermelho, segurando uma bola de plástico. A irmã do lado, com cara de poucos amigos por não ter ganho uma boneca Barbie. A árvore de natal ao fundo da foto. Um galho seco que o pai pegou no mato. Marcelo e Júlia ajudaram a levar o galho pra casa. Passaram a tarde pintando o galho com tinta prateada. O festão, as bolinhas de vidro, chumaços de algodão pra imitar neve. Os olhos de Marcelo atentos a cada detalhe da foto. Um frango assado no centro da mesa. A toalha de natal que a mãe comprara de um camelô. Duas garrafas de refrigerante. A bacia de farofa da saudosa tia Emília. O primo Bartolomeu ao fundo. Um bigode que ele cultivava há décadas. -"O velho Bartô gostava de Milionário e Zé Rico. Saía com o Maverick e ia comprar picolé pra molecada! Era seu presente de natal." Outra foto. A chuva tradicional no natal. A lona preta. A família com os gorros de Noel. Uma foto com os pais dançando, algo raro. A tradicional melancia da tarde. O jogo de futebol na rua. A visita dos vizinhos. A missa do galo na televisão preto e branco. A sessão de piadas. A mãe sempre de avental. As garrafas de Sidra. O carteado no alpendre. A mãe gostava das músicas do Raça Negra. Outros álbuns. Outras lágrimas. Fotografias mais recentes. Fotos sem a irmã, morta em 1998, numa trilha de mochileiros na Austrália. Fotos da mãe com óculos e de cabelos brancos. Fotos sem o pai. O velho Orlando, depressivo, com saudades da filha, pulou de uma ponte pra morte. A última foto da mãe de Marcelo, no natal de 2019. O leito do hospital. A quimioterapia. Marcelo, careca, solidário a mãe com câncer. Elvira se foi, dois dias após o natal. O rapaz órfão perdeu o chão. Passou um dia das mães triste. Um ano pra se esquecer. A pandemia do Covid-19. Isolamento, breakdowm, máscaras, álcool gel e uma avalanche de sentimentos. Abril de 2019, a tia da farofa contraiu o vírus. O hospital de campanha do Pacaembu a recebeu por uma semana. Marcelo não pode nem se despedir da boa tia Emília. O velho tio Bartô também se foi, vítima do Coronavírus, em setembro. -"Natal perdeu a graça!" A cesta de natal da empresa. Marcelo deu a sua cesta a um de morador de rua que pedia no semáforo. -"Que você tenha um feliz natal pois o meu não será. Nunca mais será, meu amigo." O apartamento sem as luzes. Ele colocara o pisca pisca na lixeira de recicláveis do condomínio. Doou o presépio e a árvore de natal da mãe a um asilo. Se ofereceu pra trabalhar, no dia de natal, no lugar do colega Benjamin. Trabalhando, esquecerá um pouco que é natal. Marcelo fechou os álbuns. Voltaram para a gaveta. Ficarão ali, certamente por um ano inteiro, sem serem vistos novamente. -"Shoppings, correria, presentes, decoração natalina, abraços, comemoração, champanhe, tudo perde a graça sem aqueles a quem amamos." Disse, notando que a chuva passara. -"Bóra caminhar, Goku." O caminhão do lixo. Os lixeiros com sinos e vestidos de papai Noel. A música da Simone, primeiro lugar no sistema de som dos supermercados. Poucos dias para o natal. Um natal diferente. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 19/12/2020
Reeditado em 19/12/2020
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