(PANA)CEIA DE NATAL

Estico o pescoço sobre as cabeças à minha frente, tal qual uma lhama curiosa, para observar a ceia natalina com meu velho hábito de imaginar o que as pessoas, animais ou coisas pensam em determinadas situações. Pessoas sorriem sonsamente, outras disfarçam a vontade de avançar sobre a comida posta na mesa antes da oração. “Ah, se estivéssemos a sós em casa”, deve pensar a esposa do marceneiro que havia iniciado uma dieta nutricional há dois meses e não se contém apenas com a salada de verduras. “Hoje não faz mal”. Meu sobrinho de seis anos – um garoto travesso – corre atrás de um balãozinho desamarrado de um arranjo de quatro balões suspensos no armador de rede. Incentiva meu irmão: - Pega, Danizinho, pega! O pirralho se engancha no fio do notebook ligado à caixa de som e... Ploft! - Esse menino era pra ser chamado de Danadinho ao invés de Danizinho! É o que se escuta da fétida boca à nicotina barata do primo chato, o ébrio que apertou minha mão umas vinte vezes. “Você é meu, pô! Somos família”. Arranho os dentes entre si. “Cara chato do caramba!” Desvencilho-me e noto o marido ciumento da minha prima com os olhos esbugalhados fiscalizando os olhares masculinos de todos ao redor. Minutos depois, o casal é visto discutindo no corredor externo da casa: “Já estou cheia disso!”. Um vira-lata passa cansado pela calçada e nem dá importância ao gato felpudo sobre o regaço de uma velha branca de cabelos eriçados com destaque para o seu batom vermelho. Presumo do cachorro: “Estou fatigado e com a pança cheia! Não quero saber de felino nem de vampira!” Então, o Tio Fransquinho se aproxima segurando o cachimbo e calçado nas suas botas de couro se achando Getúlio Vargas. Agora, não imagino, eu realmente, penso: “Vou ao banheiro para não ouvir as aulas repetidas de história pra boi dormir que ele sempre conta”. Sempre há um parente na família que prefere ficar isolado por revolta a qualquer coisa ou simplesmente por ser antissocial. Adentro à cozinha e me deparo com a figura, semblante fechado, pratinho de comida sobre as pernas, e digo-lhe: - Rapaz, por que você não vai lá fora interagir com o povo? Você está com o pé cagado? O enjoado nem responde, apenas meneia a cabeça e faz uma careta enrugando a boca. “Às vezes, penso que ele está é certo. Sei não, mas sei lá”. Na porta para o quintal, duas amigas de minha irmã param de cochichar quando me veem, soltam as mãos e seguem para dentro. No banheiro, abro o zíper da calça, a urina sai e sinto alívio com olhos fechados e a cabeça inclinada para cima. De repente, algo pegajoso e frio se fixa em minha virilha. “Valha-me Deus! O que é isso?” No susto, espano as mãos sobre aquilo que cai no chão e salta para atrás da privada. Um pouco de urina mancha minha calça, então tiro a camisa passada para fora e escondo a nódoa. Não ataco o pequeno anfíbio, deixo-o tranquilo e aceno antes e ele me corresponde com os olhinhos de caroço de maracujá: “Boas festas, humano!”. “Apesar do susto e a calça mijada, gosto do coaxar das rãs”. Minha tia ao pegar a panela cheia de lasanha derruba a colher de pau em cima da mesa respingando em minha camisa. Para não me dar espaço para reclamar, ela diz: - Povo só quer saber de comer, ajudar que é bom, nada! A calopsita no poleiro da gaiola coça o papo eriçando as penas da cabeça como se fossem lâminas de barbear. É como se ela me dissesse: “Povo para fazer zoada. Não me deixam dormir”. De repente, sinto vontade de ir ao quintal onde há ateiras, limoeiro, cajueiro e dois coqueiros. Escuto o farfalhar de algo no cantinho escuro do muro onde há um pé de acerola. Amiúdo a vista na tentativa de descobrir o que acontece. De súbito, uma imensa ratazana corre e entra em um buraco, levando consigo um dos pensamentos que não imagino nessa noite: “Quase que ele flagra a filha dele namorando”. Retorno à ceia na varanda. O boneco do Papai Noel sorri desconfiado como se quisesse me dizer algo mais: “Ho ho ho... Feliz Natal!

Mas, minha pseudo-intuição captou apenas metade da mensagem: “Você será avô antes do próximo natal”.

Por essa,

Eu não imaginava.

Ilton Paiva
Enviado por Ilton Paiva em 23/12/2020
Reeditado em 23/12/2020
Código do texto: T7142603
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.