Pau Brasil

“Doutorzinho, manda eles darem comida pra Pau Brasil”. Essa frase surgiu de imediato em minha mente quando aquela figura esquálida atravessou a rua bem em frente ao meu carro. A mesma silhueta, o mesmo andar arrastado de eras atrás. Quantos anos ela teria agora? Jurava que ela já tinha morrido há muitos anos.

Aquele breve instante pareceu-me algo saído de outro mundo. Em um átimo de segundo mil lembranças emergiram e só despertei quando alguém buzinou atrás de mim apressando-me.

Quando olhei pelo retrovisor ela já tinha sumido.

Chamava-se Pau Brasil e era só mais uma das muitas pacientes psiquiátricas que viviam sendo internadas no “Lima Barreto”. Ninguém nunca soube de onde veio o seu apelido e desconfiava-se que ela sequer lembrava qual era o seu nome verdadeiro.

Naquela época eu só tinha dezenove anos de idade e fazia o segundo

ano de enfermagem. Aquele estágio em um hospital psiquiátrico veio bem a calhar e terminou sendo determinante para que eu seguisse o curso, já que pensava seriamente em mudar para ciências contábeis. De uma hora para outra a pequena bolsa que eu recebia passou a pagar minhas passagens de ônibus e ainda sobrava alguma coisa.

Pau Brasil era uma figura curiosa. Magra, negra, com uma das pernas demasiadamente grossa e inchada por causa da filariose. Certamente tinha mais de quarenta anos e quando não estava internada vivia perambulando pelas ruas. Até de madrugada eu já a tinha visto vagando pela cidade. Certa vez a encontrei bem na frente da universidade pedindo dinheiro para um e outro. Quando me viu perguntou-me logo: “doutorzinho, quando eu vou voltar pro hospital?”.

Lembro que certa vez uma das pacientes, em um surto de agressividade, tentou agredir-me e Pau Brasil aplicou-lhe uma gravata por trás imobilizando-a. “Ei, não bate no doutorzinho que ele é legal com a gente”, falava enquanto a outra paciente ia ficando arroxeada com a força do estrangulamento.

Aqueles seis meses estagiando entre a loucura e a sanidade ajudou-me a ver o mundo de outra maneira. Quando terminei o curso trabalhei em várias áreas da enfermagem, mas me estabeleci em definitivo na psiquiatria. Sempre achei que aquela paciente, em especial, simbolizava essa minha tomada de decisão.

Só que o tempo passou e aquele garoto cheio de espinhas no rosto ficou para trás.

Dentro de alguns meses eu me aposento. Estou ansioso para que isso chegue logo, mas também fico pensando sobre o que vou fazer quando não tiver mais que acordar cedo para ir trabalhar. Confesso que isso me angustia de uma forma que não sei definir direito.

Sempre tive hábitos que todos falavam ser coisa de gente solitária. Ir sozinho ao cinema, ler de madrugada, cantar no banheiro, ficar em um banco de praça olhando as pessoas, coisas desse tipo. Claro que quando casei e os filhos vieram esses hábitos deram uma diminuída significativa, mas sempre estiveram ali em algum canto.

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Acho que é milésima vez na vida que sento em um banco de praça para pensar sobre algo que me aflige. Meus fantasmas estavam a ponto de se materializarem quando, de longe, eu diviso Pau Brasil. O mesmo andar, o mesmo cabelo desgrenhado e até as roupas parecem as de quarenta anos atrás.

Ela não me viu. Caminha olhando para o chão, procurando por algo. Finalmente encontra o que procurava: um resto de cigarro. Enquanto ela fuma fico olhando para a sua perna sequelada pela filariose e não consigo disfarçar um leve sorriso, sempre achei que aquilo lhe dava um perfil engraçado e de alguma maneira combinava com ela.

Lembro que adorava quando ela falava referindo-se a si mesma usando a terceira pessoa: “ninguém casou com a Pau Brasil porque ela era louca da cabeça”. Nunca a vi triste ou apática em algum canto do hospital, e isso fazia um contraponto muito grande, pois em um manicômio a coisa mais comum eram os pacientes ficarem deprimidos, agitados ou delirantes.

Pau Brasil não tem mais a mesma desenvoltura de antes ao andar, mas ainda assim fico impressionado com a forma como ela anda.

De longe ela me vê e se aproxima.

Não pude deixar de sentir uma leve felicidade misturada com a surpresa por ter sido reconhecido depois de tantos anos. Olhar aquele velho sorriso, ainda exibindo as mesmas falhas de dente, atualizou um passado muito distante.

- Ei, doutorzinho! O senhor não quer conversar com Pau Brasil?

Era um fim de tarde preguiçoso e aquele rosto negro e enrugado expressava um sorriso divertido quando olhava para mim.

Ainda era o mesmo sorriso...

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 26/12/2020
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