A besta e a platéia

Morte. Nos noticiários, na rua, nos hospitais, na esquina. Uma vez ouvi alguém dizer que somos animais que sabem demais, por termos ciência da própria finitude. Talvez seja isso que faça do humano essa metamorfose constante sobre duas pernas com uma cabeça que se bate e rebate entre o viver e o morrer, entre o ter e o ser.

Mas não era na morte como final inexorável de todo e qualquer ser que caminha – ou flutua – nesse chão que estava pensando. O homem pode matar. Cada um de nós tem nas mãos o poder de acabar com a própria vida ou com a vida de outro ser. Matar é uma possibilidade. Não, matar é uma escolha.

O que separa um assassino de um ‘não-assassino’? A criação, talvez? Seus princípios morais, sendo aqueles que aprendeu por si mesmo ou os que foram empurrados goela abaixo?

O acaso. Isso é o que separa um ser ‘matante’ de um ser ‘não matante’. O acaso que joga alguém dentro de um caldeirão em ebulição, que faz nascer nele a besta que ele esconde todos os dias, cada vez mais fundo no porão da alma.

Eu me recordo de ter visto em breve relance a besta. Era um monstro disforme, que vive em um umbral de sombras onde não se questiona moral, ética ou essas amenidades que tanto povoam as discussões filosóficas. Ele tinha uma respiração que era mais como um latejar, pulsando e me arrastando por uma sequência de atos que eu não poderia conceber se ali estivesse.

Vi naquele cachorro o inimigo. Não era o fato dele comer meus brotos de alface plantados com esmero no suporte de isopor para serem depois replantados na horta que havia acabado de idealizar. Não era a destruição premeditada e intencional de meus canteiros de flores que fazia dele meu rival. Não era por sujar de lama as paredes brancas da varanda do sítio correndo com medo do estrondo dos trovões, derrubando no pânico tudo que vinha pela frente.

Era o espelho que eu precisava destruir. Ele jogava na minha cara a fraqueza que era minha e de mais ninguém. Naquele outro pequeno e indefeso – mas não tanto – via o que eu não queria ver. Subjugada. Infeliz. Esvaindo-se em amor não correspondido em uma servidão cega na tentativa de ser suficiente para um outro que nunca veria em mim aquilo que eu queria ou era. Interpretando um papel que não me cabia, eu ia me esvaindo em canteiros de flores e hortas que eu mesma queria destruir.

Eu era o cachorro. Eu era a versão humana do cão, que mais corajoso que eu, não resistia à vontade incontrolável de destruir cada haste, cada flor, sujar de terra o que estava fora para que ficasse tão roto e sujo quanto o que ia dentro.

A chuva não deteve o ódio que brotava dos poros e eram lavados pelos pingos gelados. Minhas mãos em seus pelos, agarravam e socavam a cabeça do pobre animal, que se defendia com mordidas mais do que justificadas. Em uma cena dantesca os dois animais se atracaram no chão molhado cheio de lama e a certa altura eu não sabia mais onde eu tinha início ou onde terminava o cão.

Foi quando meus olhos ficaram detidos nos dele e com um calafrio senti na língua o gosto do sangue do animal enquanto os tufos de pelo embolados com saliva espessa arranhavam minha garganta. Com as feridas causadas pelas mordidas no braço cobertas de lama, levantei e me deparei com os olhares incrédulos do marido, enteado e da filha pequena, que se protegiam da chuva sob a cobertura da varanda enquanto assistiam o espetáculo. Envergonhada passei pela plateia sem qualquer aplauso, buscando abrigo no calor da água morna do chuveiro que, sem qualquer preconceito, lavou com igual esmero sangue, pelos e lágrimas.

Não. O cachorro não morreu naquele dia. Nem morreu pelas minhas mãos. Posso dizer que fizemos as pazes naquela noite chuvosa perdida no mar da memória e passamos a nos tratar respeitosamente, sempre com olhares de soslaio. Para mim ele nunca mais foi só um cachorro. Acho que nem eu fui mais para ele apenas a humana que o alimentava. Ele foi o único ser vivo que viu, frente a frente, besta que em mim habita.

Não mais encarei a morte e o ato de matar com estranheza ou como se fosse algo que diz respeito apenas aos outros - malfeitores, celerados, assassinos odiosos - saídos um mundo ao qual não pertenço.

Na linha tênue que separa o assassino da vítima está o olhar da plateia.

 

Bianca Liberti
Enviado por Bianca Liberti em 18/01/2021
Código do texto: T7162676
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